Ivan Cação
quinta-feira, setembro 03, 2020
quinta-feira, fevereiro 13, 2020
BANGSE: “Qi PLENO”
BANGSE: “Qi PLENO”
PREFÁCIO
Transcender é a passagem do ser para o devir, é exceder
as possibilidades para além do limite da alma, é o total equilíbrio
compreendido em seu processo de construção, cujo porvir se concretiza no tudo
que existe, no tudo que foi criado.
O “Qi Pleno” é o Homem inteiro, completo,
cheio, absolutamente perfeito dentro de suas possibilidades. É o Homem que
preenche o vazio da escuridão. É o Homem que mestreia a luz de suas faculdades
mentais. É o Homem que mantém uma constante vigília do saber e da compreensão,
que transcende o tempo presente de sua alma.
O PERFEITO EQUILÍBRIO
Uma “Energia Plena” seria
uma não energia. Algo como o vazio, como o nirvana. O nada.
Poderíamos
seguramente afirmar que a “Vontade de Potência” nietzschiana é uma partícula
daquilo que chamamos de “Qi Pleno”. Em resumo, Nietzsche define vida como um esforço contínuo que busca
constantemente mais potência, sendo a vontade de potência a vida em autossuperação§.
E todas as grandes coisas findam por obra de si mesmas, por forças
interconectadas, geradoras e destruidoras de si mesmas. Em seus escritos “Vontade
de Potência”, Nietzsche afirma a monstruosidade da força, sem início e sem fim,
um jogo de forças que ao mesmo tempo se acumulam e mnguam-se, mudando
eternamente, sem nenhum cansaço, do “eternamente-destruir-a-si-próprias”.
Assim, ele afirma que a força revela a vida.
O
“Qi Pleno”, ao mesmo tempo que se opõe à “vontade de potência”, permite sua
estadia em suas entranhas. No “Qi Pleno” não há ação nem reação; não há luta de
forças, não há vontade, não há direção, apenas encontramos o nirvana. Daí surgem
dois problemas: o que há no nada? Se ele não modifica nem influencia, qual sua
importância? Nessas duas fascinantes questões, embora simples, não há clareza
nem precisão, porém encontramos a necessidade da existência do nada para
justificar a vida. É no nada que tudo circula, é em redor do nada que há toda
existência, vida, vontade de potência.
É
no equilíbrio que surge o ser, o objeto, o eu, o nós, o tudo; é no extremo do
equilíbrio que existe a vida, é no equilíbrio que existe a felicidade, é no
equilíbrio que existe um imenso vazio que oportuniza a existência de tudo, e,
quem sabe, de um Deus. Isso porque é do nada que se está em tudo, é do tudo que
se vai para o nada; tudo em um perfeito equilíbrio.
BANGSE
E A VOZ
– Que escuridão é essa? – pensou
Bangse.
– Alô! Quem está aí? – disse ele em
voz alta.
Em
meio a um breu inigualável, uma completa escuridão, Bangse se encontrou com
algo que não conseguia decifrar ou entender, apenas sentia e ouvia.
Procurem
imaginar-se em algo parecido: uma escuridão total, nenhum feixe de luz, uma
imensidão vazia e negra que ocupa um enorme espaço. Vozes, gritos, choros e
risadas estavam por toda parte na imensidão do espaço.
Bangse pressentia uma
multidão de indivíduos, ou melhor, uma multidão de “cidadãos” que ocupava quase
toda parte da imensidão do espaço negro. Ele percorreu partes daquele vazio
negro gritando sempre: “Quem está aí?”.
Depois de caminhar um
longo percurso, percebeu que não estava nada cansado. Resolveu então correr; corria, corria e nada
de encontrar ninguém, nem de tocar em ninguém em meio a tantas vozes e
murmúrios.
Em meio à corrida deu um
pulo e percebeu que saltara muito alto. Em seguida, parou e resolveu dar um
impulso ainda maior e o resultado foi quase um vôo. Não importava a altura que
saltara, os sons das vozes continuavam em todo lado que percorrera.
De repente, Bangse parou.
Resolveu deitar. Percebeu nesse momento que seu corpo começou a flutuar. Ele se
deixou levar pela imensidão do espaço negro entre as vozes e murmúrios,
respirou profundamente várias vezes, nenhum tiquinho de luz que pudesse iluminar
uma minúscula pulga aparecia por lá. Aquele lugar sombrio e sensações angustiantes
começaram a incomodá-lo. Ele não tinha medo. Era uma inquietação, algo que lhe
incomodava a alma, algo que atormentava sua identidade, algo pesado e obscuro
que ele sabia sempre o dominou.
– Quem és Tu? – indagou
mais uma vez Bangse.
Uma imensa Voz muito grave
e estrondosa projetada sobre sua cabeça lhe respondeu (apenas ele, em meio à
multidão da escuridão, conseguiu ouvir). Era uma Voz parecida com a de um ator
ensaiando seu monólogo num imenso teatro vazio.
– Você acha que me
conhece? – perguntou a Voz da escuridão.
– Nem imagino! – disse
Bangse.
– Vou lhe dizer uma coisa:
Tu vives porque eu autorizei; Tu existes, enquanto pessoa, porque eu admiti.
Ninguém aqui permanece sem a minha autorização. Eu mando em todos, posso tudo,
aqui é meu território! – exclamou a Voz num tom autoritário, nariz empinado, um
tanto antipático.
Em seguida, Bangse acordou.
Bangse se levantou após
algumas horas de sono, momentos antes do despertar de seu celular em seu
apartamento.
Seu dia foi como de
costume: lecionar, ler e refletir, até que chegasse o anoitecer e voltassem seus
momentos de insônia na eterna madrugada antes de mais um adormecer. Ao ir para a
cama, após horas de reflexão, voltou ao mesmo sonho:
– Demorou a dormir, hein,
Bangse! – exclamou a Voz da escuridão. Você sofre com essa maldita insônia
porque assim o criei; para seu consolo fique tranquilo que não é somente você,
há milhares de pessoas com o mesmo problema. Com alguns sou um pouco pior, sou
mais cruel. Tento ser pior com você, porém você é aparentemente tranquilo. Isso
me causa certa frustração. Há amigos meus que sofrem com tipos como você.
Pessoas como você nos ofendem, vivem querendo nos derrubar, mas nunca conseguirão.
Sabe por quê? Simplesmente porque vocês são mais eu que eu vocês.
– Já sei quem Tu és! – exclamou
Bangse. Tu estás vagando nesse imenso museu, Tu és a sombra da humanidade!
A Voz interrompeu Bangse imediatamente
com muita raiva:
– Como ousas dizer que
vago nesse imenso museu?! Eu ocupo toda parte desse imenso museu. Tudo que está
aqui me pertence; até mesmo você, que acredita que todo homem é um Deus. Se
Deus existe aqui é porque Eu autorizei. Se Eu quiser, tiro Deus daqui. Ele
somente existe porque tenho meus interesses.
– Escute bem! – disse Bangse com um ar de
deboche. Não tente impressionar-me nem tampouco ameaçar-me, sei o quão grande
Tu és, sei o quanto tantos o adoram, pois Tu os construíste assim, sei o quanto
Tu acreditas ser importante. Porém, eu não acredito em Ti! Quando pequeno, ainda
criança, te admirava muito, na adolescência te coloquei em dúvida, hoje pouco
me importo contigo.
Por alguns instantes houve
um silêncio e Bangse continuou:
– Meus pais acreditavam
que eu devia amar-te primeiro que a eles. É hilário!
A Voz tentou reprimi-lo
gritando:
– Jamais ouses falar
comigo dessa maneira! Ninguém fala comigo assim a não ser os mais
desenvolvidos. Aqueles a quem tenho uma dívida. Tu não és nada! Quem achas que
és? Seu energúmeno inseto! Como te atreves a falar comigo dessa maneira?!
– Aqui posso tudo! – disse
Bangse ironicamente. Assim como tu, aqui me permito desafiar-te e tratar-te
como igual.
– Tu queres te comparar a
mim? Seu maldito atrevido! Como ousas? – disse a Voz, em um tom alto e
irritado.
– Aqui somos ambos alma, Tu
mesmo disseste: “Vocês são mais eu que eu vocês”. Isso me permite dizer que
ambos somos o mesmo, logo aqui me é permitido tudo como a Ti. Aqui, não “Te”
temo! Aqui, Tu não tens nenhum poder sobre mim! Aqui, Tu só tens a te defender,
a te vangloriar, reclamar e tentar me persuadir. Nada, além disso!
A Voz calou-se por alguns
instantes, mas, quando Bangse ameaçou falar, a Voz o interrompeu:
– Tu és muito mais esperto
que pensei! Tu és esperto e ao mesmo tempo tolo! Eu te reprimi durante toda a tua
vida, por que agora queres te manifestar contra mim?
– Há muito tempo que sou
contra Tua existência, porém a grande maioria dos homens jamais compreenderá
quem realmente Tu és. – disse Bangse, enquanto voava na imensidão do vazio. – Tens
uma alma tão grande quanto o teu território, porém um dia todos os homens te
compreenderão, assim como eu!
– Eu não faço homens como tu!
Deves entender o quão perigoso és para teus concidadãos! Tem paciência, podemos
conversar muito, sei que poderei convencer-te da minha importância. – disse a Voz,
agora bem mais calma. – Construo pessoas para viverem em paz, de outro modo
elas se matariam, se exterminariam. Tu compreendeste o que digo?
– Muitos intelectuais
assim acreditam, Tu os construíste dessa forma. Conheço muito bem o teu poder,
mas, para mim, Tu e “Teus” amigos não passais de uns construtores de escravos, “Uns”
construtores de homens para servir-vos, a Vós e a vossas vontades. – disse
Bangse, em um tom sério, na imensidão da escuridão.
A Voz da escuridão diminuiu
bem mais o tom e pôs-se a falar com certo grau de humildade:
– Tu deves compreender que
sou apenas um grande construtor de almas, não quero fazer mal às pessoas de bem.
Quero apenas que continuem suas vidas e mantenham um modo de ser que respeite a
mim e aos outros. Não consegues me enxergar desta forma. – Em um tom irônico
que causou risadas em Bangse, a Voz propositalmente disse: – Não consegues, até
porque aqui é muito escuro. Agora, sem brincadeirinha: Não consegues sentir a
minha importância entre as pessoas. Não pressentes o quanto sou deveras
imaculado para os cidadãos de bem?
– Não te apresentes como
um inocente de todo o processo da existência humana, não venhas passar-te como uma
alma que nada compreende! Tu tens a sabedoria. És um grande manipulador! Tu queres
o poder apenas para ti; és um egoísta e sei que realmente possuis tal poder. –
disse Bangse com frieza e tranquilidade, convicto do que estava dizendo.
Com muita raiva a Voz se
expressou como uma pessoa que fala e simultaneamente range os dentes:
– Ah, seu maldito humano! Se fosse outro lugar
eu mudaria as leis e o condenaria à
morte.
Imediatamente Bangse
interrompeu a fala dele:
– Lembra-te
que aqui somos ambos iguais. Não permito que me trates assim!
O SONHO DE BANGSE
No dia seguinte tocou o
celular de Bangse acordando-o para mais um dia de trabalho. Ele trabalhava
praticamente o dia inteiro e não se lembrava dos sonhos da noite anterior.
Porém, praticamente todos os dias tinha insônia. A maioria de suas madrugadas passava
a ler, refletir e por vezes assistia à TV até o corpo necessitar de alguns
momentos de sono. Com o sono, vinham os sonhos.
– Olá! Lembra-se de mim? –
indagou Bangse.
– Hoje não quero conversar
com você! – respondeu a Voz.
– Por quê? O que teme?
– Você é apenas um
pesadelo! Reuni-me com alguns amigos e “Eles” disseram-me que tudo não passa de
um pesadelo. Isso porque os homens que tentaram aparecer assim no real, “Nós” os
matamos. O mais importante deles, dizem os mais velhos, “Nós” o crucificamos.
– Embora “Seus” amigos o tenham
crucificado, pessoas como ele ainda continuam existindo.
– Vocês, Cristo e suas
religiões apenas causam dor e guerra! E você tenta culpar-me por tudo isso?
Veja no Oriente Médio a discórdia devido à religião: Palestinos e Judeus numa
guerra sem fim. – disse a Voz.
– Ali, no Oriente Médio, a
coisa é muito complexa, eu teria que passar horas ou dias para lhe explicar.
Porém, vou sintetizar dizendo que em Você as religiões vivem pacificamente
porque se encontram sob o domínio de um único “Você”. Se cada religião quisesse
seu próprio Estado, seria o caos. Se dividíssemos Você em vários territórios e
colocássemos cada religião num espaço, provavelmente não estaríamos longe de
uma Palestina e de um Estado Judeu. Não podemos esquecer que ao longo do tempo
seus amigos construíram o ódio entre os palestinos e os judeus. Ali, a vingança
prevalece. Se não houvesse divisão entre palestinos e judeus, não houvesse Você
e os seus, interferindo e provocando ira entre os homens em favor das
indústrias bélicas, talvez ali não houvesse esse caos. Acredito que um dia não haverá mais guerras,
porque toda religião prega o amor. Não sejamos inocentes achando que não há
interesse monetário e enriquecimento ilícito em muitas das religiões.
– E o que me diz do Estado
do Vaticano?
– Praticamente a Itália inteira
segue a religião Católica. Logo, é impossível haver conflitos entre vizinhos.
A Voz interrompeu Bangse:
– Você é apenas um
pesadelo! Não devo importar-me com o que diz. “Nosso” objetivo é construir pessoas para o bem comum,
um ou outro sempre dará problemas. Mas se existirem vários como você no mundo
real dos homens, os do meu “Espécime” estarão correndo grande risco de
extinção. Ainda bem que Você é apenas um pesadelo.
– Sou seu pesadelo como Você
e Seus amigos são o meu. Seus amigos constroem homens para guerrearem entre si;
eles jogam homens contra homens, causando discórdia, ódio e ressentimento que
se perpetuam durante gerações. Isso porque Vocês se colocam acima do espécime
humano. Você e Seus amigos desde vários milênios brincam com a morte do ser
humano. – respondeu Bangse em tom forte e alto.
Interrompendo mais uma vez
Bangse, a Voz disse:
– Blasfêmia! Isso é infame,
é mentira! Nós respeitamos os seres humanos, veja a cultura em torno da morte e
todas as coisas que beneficiam os que perderam seus entes queridos.
– Decerto há uma cultura e
alguns benefícios legais para aqueles que perderam seus entes queridos. Mas isso
não justifica nem prova sua inocência no que diz respeito às intrigas causadas
por “Vocês”. Isso apenas prova, mais uma vez, o quanto cada um de “Vocês” quer
dirigir e escravizar a vida dos seres humanos que habitam a Terra.
– Ora! Você está sendo
injusto! Você quer me assombrar, não aguento mais você aqui me perturbando, me
assustando. Você é o pior dos pesadelos de todos do meu “Espécime”. Suma daqui!
– Tenha calma! Você
parecia tão grandioso na primeira vez em que o encontrei. O que ocorre com Você
agora, o que teme?
A Voz e Bangse cessaram
suas falas por alguns instantes na imensidão da escuridão e ambos ouviram os
murmúrios, os gritos, os choros e as gargalhadas ao fundo.
Bangse aguardou uma
resposta da Voz e, não obtendo, continuou:
– Você permanecerá aí em
silêncio, escondendo-se atrás dos sons que ouvimos?
– Estamos vigilantes a
todo instante. Quando aparecem os anarquistas, alguns de nós aceitamos e não
interferimos em seus trabalhos. Por vezes, até admitimos que os trabalhos deles
sejam publicados. Mas você é abominável, que ser é você? Não sei se é um homem
ou algum tipo de espírito, sei lá o que Você é! Os homens acreditam em
espírito, vida após a morte, etc.. Eu não, Eu apenas os deixo viver do modo que
acharem melhor desde que respeitem as leis. Não entendo como chegou a ser assim!
– Diferente de Vocês que
vivem vigilantes contra homens como eu, simplesmente vivo com coragem e vigilância
sobre a minha alma. Assim, minha alma intuitivamente se apercebe, se prepara como
uma alma livre. Aqueles que mantêm a vigília como sentinelas da vida observam, analisam
e tiram suas próprias conclusões.
– Apenas isso? – indagou a
Voz. A princípio achava que você era um simples homem, agora não sei quem é. Você
me dá medo!
– Não é apenas isso! – exclamou
Bangse. Somados a isso, foram anos de leitura, estudos e muita reflexão em
noites de insônia.
– Você
não deve ser normal. – Indagou a voz.
OUTRO SONHO COM A VOZ
Bangse acordou após
algumas horas de sono em que seu corpo se agitou muito. Em seguida, levantou
para mais um dia de trabalho e mais uma noite de insônia, com poucas horas de
sono.
– O que quer hoje? Se quer
julgar-me e condenar-me, faça! – disse a Voz.
– Quem julga e condena é
Você! Eu apenas o critico e o abomino.
– Os homens é que nos
criaram! Criaram-nos para estabelecermos a ordem entre eles. Criaram-nos para
que façamos justiça. Criaram-nos para que os organizemos como sociedade civilizada!
E Eu, particularmente, procuro fazer bem o meu papel. – falou a Voz.
– A intenção dos homens
foi essa. Porém, Você e os Seus não se contentaram apenas com isso. Vocês quiseram
dominar tudo que os cerca. Você e os Seus quiseram tomar posse de tudo e de
todos. Por isso, eu lhes digo: Vocês têm o pior dos defeitos, “a incapacidade
de fazer aquilo que as pessoas acham que são capazes”.
– Veja só! Julga-nos mais
uma vez?
– Não! Estou apenas expondo
as minhas verdades. – respondeu Bangse.
– Então a culpa é das
pessoas e não nossa! Os humanos devem fazer a parte deles para que as coisas
funcionem. Não venha culpar-nos pela incapacidade do homem!
– Mais uma vez se passando
por inocente?! Não “vê” o quanto é mau e cruel? Não percebe sua incapacidade,
não “vê” o quanto é desnecessário para os seres humanos? – indagou Bangse.
– Você parece com aquele
que os antigos chamaram de Jesus Cristo! Você quer acabar conosco. Você quer
nos associar com o maior inimigo da igreja! É isso, não é?
– Jesus disse no passado:
“Dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
A Voz o interrompeu subitamente
antes que pudesse completar sua fala:
– É isso! Ele
valorizou-nos. Ele foi melhor que você, quando reconheceu nossa importância
utilizando dessas palavras. Apesar de não gostar de nós, ele sabia que nossa
existência era necessária para a raça humana.
– Eu interpreto as
palavras dele, quando diz: “Dê a César o que é de César”, como uma crítica ao
poder de Vocês. Isso porque ele sabia que o interessante para Vocês é a posse
de tudo que o homem é capaz de adquirir. E, se não lhes fosse dado, a pena seria
a pior das piores para os homens naquele momento. Os Seus castigariam os homens
tirando-lhes a própria vida. Vocês sempre quiseram utilizar da força que
possuem para saquear as pessoas de bem. Você e os Seus constroem a mente humana
para temê-los. A crucificação de Jesus Cristo pelos Seus foi para fixar no
inconsciente coletivo da população, ao longo da história dos homens, o
pensamento: “se os homens não fizerem o que Vocês querem serão punidos
cruelmente”. E o pior é que isso é uma verdade! – exclamou Bangse.
– Então o que sugere? Nosso extermínio. É isso, não é?
– Essa seria a melhor solução,
porém há milênios Vocês ocupam a vida dos seres humanos. E não é tão simples
assim, talvez decorram alguns milênios até sua extinção.
– Você sabe que muitos
morrerão até que isso aconteça e você carregará essa culpa. Será o grande
culpado por muitas mortes ao longo da história em nome de uma suposta
liberdade.
OPOSTOS: BANGSE E A VOZ
Bangse acordou meio tonto,
pois dormira poucas horas. Levantou tropeçando nos objetos que se encontravam a
sua frente. Eis que chegou a sua residência após mais um dia de trabalho e voltou
a dormir depois de algumas horas de insônia.
– Está pronto para assumir
a culpa? – indagou a Voz.
– Culpa de quê?
– Você esqueceu que ao
longo da história dos homens muitos morrerão em nome de uma suposta liberdade?
– Aos poucos os homens “O”
colocaram em suas vidas. Aos poucos os homens deverão acabar com todos do “Seu
Espécime”, porque, há milênios, Você e os Seus ocupam a vida dos seres humanos.
Há séculos os do Seu Espécime se constituem nos seres humanos como parte deles;
demorarão outros milênios para serem totalmente disseminados entre os homens.
– Isso é utopia! – exclamou
a Voz. Você sabe que haverá muitas mortes em vão por sua culpa.
– Se eu e Você
conseguirmos, ao longo da história dos homens, construir homens pensantes e
capazes de serem bons uns com os outros, pessoas de bem, sábias, com conhecimento,
capazes de elaborar o extermínio de Vocês num espaço de tempo plausível, talvez
em poucos mil anos possamos ter sucesso.
– Você está dizendo-me que
eu deveria compartilhar com meu próprio extermínio?! Isso é um absurdo! Viemos
para ficar acima de tudo e de todos!
– Pense bem. O que estou
propondo é deixar os homens seguirem seu próprio destino; deixe-os viver suas
vidas com equilíbrio, sem pressão, sem opressão, sem depressão e sob o comando
de suas próprias consciências. Deixe suas consciências serem formadas por seus
conhecimentos adquiridos através da liberdade de ser, da liberdade de sentir a
liberdade. Quem sabe assim, eles serão mais felizes. – falou Bangse.
– Os homens não nasceram
para serem felizes. – disse a Voz, bastante irritada. Os homens nasceram para
ter somente instantes de felicidade, apenas o suficiente para satisfazê-los por
momentos.
– Entendo perfeitamente o
que quer dizer, porém Você não me entendeu.
– Então me explique, pois
estou há muito tempo neste pesadelo. – continuou a Voz, mais calma e num tom irônico.
– Livres de um poder tão
grande como o Seu e de Seus amigos, os homens poderiam viver melhor, mais tranquilos
e desimpedidos de tanto esforço para pagarem os impostos cobrados por Você. Viveriam
em comunhão com o próximo sem qualquer tipo de pressão ou opressão, operacionadas
por Você e os Seus.
– Você vem novamente com
mais uma utopia! – exclamou a Voz. Não percebe que é impossível para os homens
viverem sem Nós?
– Os homens sem Você, como
disse anteriormente, seriam construídos pelos seus e pelo próprio destino. Poderiam
ser construídos por si em comunhão com a paz e o amor, respeitando acima de
tudo ao próximo, a si mesmos e à natureza.
– Por si a raça humana já
estaria extinta há muitos e muitos anos! Se não fôssemos Nós, como tu mesmo
disseste, “Eu e os Meus”, a raça humana estaria banida da face do planeta
Terra. É isso que quer?
– Não acredito nisso!
Acredito que sem Você os homens seriam livres, sem Você os homens viveriam num
mundo privado e bem mais igual.
– A história dos homens
contraria as suas últimas palavras. Concorda comigo?
– Isso porque Você e os
Seus construíram homens para serem assim. Portanto, quando Você e os Seus
deixam de exercer o poder sobre os homens, eles ficam à deriva e lutam, até se
matam, buscando o poder para seu grupo para constituir um novo do “Seu
Espécime”.
– Isso demonstra que os
homens não vivem sem Nós... – afirmou a Voz.
– Isso mostra que Vocês
constroem homens para serem Seus escravos. Enquanto Vocês durarem, os homens
construídos por Você e pelos Seus estarão sempre buscando não aquilo que
realmente querem, mas aquilo que Você e os Seus querem. Assim, eles acreditam
que, aliados aos do “Seu Espécime”, estariam sobre os outros homens. Porém, na
verdade, eles apenas estariam abaixo de todos os homens, pois, considerando o
grau de escravidão, este seria o topo. Isto é, em um paradoxo, o topo, neste
caso, é o máximo da servidão, portanto os que estariam abaixo do topo seriam
menos escravos.
– Que maldito ser é você?
Como pode ser tão cruel e desprezível em todas as palavras que diz?
– Já lhe disse, sou uma
alma livre, sem pátria, sem nação, sem povo, sou apenas igual. – afirmou
Bangse.
– Isso não é possível! Você
é diferente de todos os homens.
– Não! – exclamou Bangse.
Sou igual, pertenço a todas as pátrias, simplesmente porque as pátrias são
criações como Você.
– Você é Eu?
– Não! Pelo contrário! Sou
seu oposto, pertenço às pessoas e elas a mim; eu respeito todos, todos os
indivíduos de todos os espécimes, menos do seu.
E antes que a Voz o
interrompesse:
– Para mim, Charles
Chaplin representa uma verdadeira oposição aos Seus. Chaplin, sobretudo, era o
maior inimigo de Vocês, odiava as ordens impostas pelos Seus: os juízes e suas
prisões, a ordem da moral estabelecida, como também a ordem dos lucros, bancos,
indústrias, etc. Inclusive a ordem da burguesia e do capital e de seus falsos e
infames mitos. Ele mostrava suas ideias claramente em seus filmes. Ao contrário
do que muitos pensam e pensavam, ele não era um comunista. Apesar de seus
pretensos laços com a Rússia, Chaplin não era patriota nem tampouco queria
adaptar-se a qualquer tipo de cidadania, principalmente à norte-americana. Ele
era livre. Livre de qualquer pensamento que impusesse qualquer tipo de poder. Chaplin
atacou toda a ideologia ocidental, de “boa sociedade”, ele mostrou quem
realmente eram Vocês. Voltava-se sempre
para os humildes, demonstrando quanto Você e os Seus são cruéis. Ele demonstra
claramente isso nas cenas do filme “Rua do Medo”, quando distribui comida às
crianças e atira grãos de milho à sua volta como se houvesse muitas galinhas a
quem dar de comer. Tudo isso demonstra sua genialidade como um dos maiores
anarquistas que já presenciei.
– Não tente me enrolar com
Chaplin! Se eu pudesse tocá-lo... – disse a Voz, um tanto enfurecida. – Você
disse que pertence a todas as pátrias e, em seguida, que a pátria é criação minha.
Não está sendo claro!
– O que tento dizer-lhe é:
Não importa em que país ou local uma pessoa viva, eu sou igual, não quero o
poder, não desejo dominar ninguém, não sou nem me sinto superior nem inferior a
ninguém. Sou apenas igual, sem fronteiras. Sou apenas um Chaplin mais direto e
objetivo; posso demonstrar a Sua ineficiência quando Você e os Seus separam,
dividem, distribuem por classes sociais, por status, por raça, etc. Por mim
seria tudo diferente, todos teriam as mesmas oportunidades, e, se não tivessem,
os mais favorecidos repassariam oportunidades aos que ainda não foram
favorecidos.
– Ora! Isso parece mais um
discurso político. Por um acaso sairá candidato nas próximas eleições? – indagou
a Voz, ironicamente.
– Não tenho essa
pretensão. Houve uma época em que acreditava ser este o caminho: homens de bem
ocupando cargos do legislativo e executivo para legislarem e executarem a favor
dos menos favorecidos. Hoje, acredito que esse é o verdadeiro caminho da total
escravidão. É o caminho que somente os medíocres e os mais ambiciosos pretendem.
É o caminho que, a meu ver, nenhum filósofo ou intelectual que tenha sabedoria
na alma deseja para si.
– Você não passa de um
escravo meu e se acha dono da verdade! – exclamou a Voz.
Bangse interrompeu
subitamente dizendo:
– De certo meu corpo é Seu
escravo, como tenho afirmado, mas minha alma é livre. Mas Você é o maior dos
escravos! Tem a posse, o poder, ao mesmo tempo que é escravo de todos os
homens. É possuidor de uma alma sem corpo.
– Como ousa? Meu corpo é
toda essa imensidão que ocupa parte desse continente.
– Não queira apoderar-se
da natureza que não lhe pertence. – disse Bangse.
– É lógico que me
pertence! – gritou a Voz. Sou dono de tudo isso e também de você e dos seus
espécimes.
– Você se julga um Deus,
não é verdade? – indagou Bangse.
– Sou muito mais que um
Deus, pelo menos nesse território.
– Aquele ou Aquilo que se
julgue o maior porque possui certo poder sofre um poder contrário, que o esmaga
em igual proporção.
– Que filosofia barata! –
exclamou a Voz.
– Apenas o equilíbrio justifica
a capacidade, e não o poder maior. – falou Bangse, que tinha conhecimentos
sobre o equilíbrio.
– Se eu sofro um poder de
igual proporção, então estou em equilíbrio. – afirmou a Voz, dando muitas
gargalhadas.
– Você é um tolo! Não
passa de uma Voz na imensidão do vazio e da escuridão. Jamais compreenderia o
que é o real equilíbrio. No planeta Terra, tudo gira em torno do equilíbrio. Tanto
a natureza quanto os astros estão em total equilíbrio, tanto o amor quanto o
ódio estão em harmonia.
– Isso prova que eu
existo: tenho uma alma, possuo um corpo, que é o grande território, e estou em
equilíbrio com os homens. Meu território gira em equilíbrio com o planeta
Terra, este é o meu corpo. Minha alma está nas leis, no meu poder sobre os
homens. Não é certo? Desta vez eu peguei você!
– Você pode caminhar? –
perguntou Bangse. Pode manusear um objeto ou senti-lo? Você tem um coração que
pulsa, bate e vibra com as emoções? Pode amar ou sofrer por amor? Você pensa no
passado e planeja seu futuro com emoção? Sente o cheiro de uma flor ou da terra
molhada? Você pode segurar a mão de um filho ou da pessoa amada e dizer que a
ama? Por isso Lhe digo: Você é apenas o filho dos homens! O filho cruel, mal
agradecido que deseja matar os próprios pais.
Perplexa, a Voz mais uma
vez interrompeu Bangse:
– Você é o mais injusto
dos injustos! Comecei como filho; como já disse, fui criado pelos homens. Hoje
sou o pai dos homens, e não o filho. Eu sou o bem e faço de tudo para que os
homens vivam bem.
– Tomara fosse assim! Você é o mal que deve
ser podado pela raiz. Você deve ser banido da face da Terra por querer ocupar
um lugar divino que não lhe pertence. Não
merece o destaque que tem e nem tampouco o cargo que ocupa.
BANGSE E O ESTADO
Com um solavanco Bangse
acordou, ao ouvir o seu celular tocando. Preparou-se então para mais um dia de
trabalho e uma longa noite de insônia até que viesse o adormecer.
– Hoje não estou com
paciência para conversar com você. – disse a Voz. Você é desagradável demais!
– Você e os Seus têm muito
a dizer para os homens. Pela crueldade que cometeram contra homens de bem.
– Que satisfações nós lhes
devemos?
– Por que Sócrates foi
condenado a tomar cicuta? Por que Cristo foi pregado na cruz? Por que Giordano
Bruno morreu na fogueira? Por que Wilhelm Reich§ foi para a prisão? Por que Freud foi
vaiado em Viena? Por que o nosso prestigiado Monteiro Lobato foi para a prisão?
– Por quê? – perguntou a
Voz. Responda-me você.
– Simplesmente porque as
ideias deles se opunham contra Sua visão e a dos Seus.
– Não invente histórias!
Vocês constroem sua própria sepultura e depois vêm culpar a Nós.
– Você ainda presenciará o
novo paradigma social. Tenho certeza de que isso um dia acontecerá. – falou Bangse.
Os homens ainda hão de implantar uma nova geração capaz de perceber quanto Você
e os Seus são ineficientes e cruéis com a humanidade.
– Lá vem você com a
mesmíssima conversa. Cruel é seu Deus que permite que vocês sofram e nada faz,
não Eu! Esqueceu-se que o filho de Deus disse: “Esse não é meu reino”. Isso
quer dizer que ele se considerava um rei e poderia salvá-los dos do Meu
Espécime. Você falou que é igual a todos; ele não se considerava igual, e sim
um ser superior. Um Rei!
– Quando Cristo afirmou
que aquele não era seu reino, quis dizer que não pertencia ao Seu mundo do
“Ter” e sim ao mundo do “Ser”. Como igual, ele jamais poderia pertencer ao
Reino dos Seus, e sim do reino dos iguais, do reino onde não há um rei. Assim,
ele assumiu ser mais que um rei, assumiu ser um irmão, “um igual”, “um
semelhante”, nem maior nem menor, apenas alguém.
– Onde você encontra
tantas respostas?
Antes mesmo que Bangse
respondesse, o Estado continuou:
– Cristo nunca quis ser
igual! Até porque ele se achava um ser superior em bondade e perfeição.
– Não! Ele queria que os
homens entendessem que a bondade construída na alma é uma evolução do próprio
homem. Ser humano é a capacidade de compreensão. Para que os homens da época o
entendessem, o único argumento era mostrar o quanto um homem poderia aproximar-se
de um Deus. Assim, ele usou as palavras de modo que os homens compreendessem a
própria origem da alma.
– Mais uma vez, não sei
onde arruma tantas respostas! Mas, pelo que entendi, a origem da alma estaria
em Deus e não em Mim. Mais uma vez suas palavras diferem de outras anteriores;
afinal, a alma é construída por Mim ou originada em um Deus? Decida-se!
– A alma no sentido da
essência da consciência humana é originada em Deus, mas construída em sua
moral, ética, leis, crueldade, etc. por Vocês.
E A DISCUSSÃO CONTINUA: AS IDEIAS DE
PLOTINO
Mais uma vez, a Voz
interrompeu Bangse:
– Estou começando a
compreendê-lo melhor! Você não passa de um quadro tentando passar-se pelo
pintor, de uma obra querendo passar-se pelo criador.
– Você, por ser apenas uma
alma sem corpo, nunca terá a faculdade para compreender a natureza íntima de
Deus, nunca poderá ter idéia de algumas de suas perfeições.
– Já lhe disse que meu
corpo é todo esse território. Não venha dizer-me que não possuo um corpo.
– Nunca você entenderá o
que é realmente um corpo, como poucos homens compreenderão a divindade de Deus.
– disse Bangse. Deus existe em cada um dos seres humanos.
– Seu ignorante! Você por
vezes se passa por um puro panteísta§ e outras por um mercenário
protestante.
- Para mostrar-lhe que não
sou tão ignorante quanto pensa, eu lhe direi quais as formas de panteísmo:
Hilozoísta, o divino é imanente do mundo e se caracteriza como elemento básico
do mundo que empresta mudança e movimento à sua totalidade; Imanentista, Deus
faz parte do mundo e é imanente nele; Monista absolutista, Deus é tanto
absoluto quanto idêntico com o mundo; Monista relativista, o mundo é real e
mutável. Sendo assim, Deus é imutável e não é afetado pelo mundo; Acósmico,
Deus é absoluto e constitui a totalidade da realidade. Acredito que estou mais
para neoplatônico. Segundo o neoplatonismo, Deus é absoluto em todos os
aspectos, removido do mundo transcendente,
é uma forma de monismo§ idealista. Porém, um monismo um tanto
absolutista.
– Gosto dos conceitos,
porém são muito abstratos. – disse a Voz.
– Segundo a Bíblia, o
panteísmo é deficiente por causa de duas considerações: a primeira é que nega a
transcendência de Deus e a segunda defende Sua imanência radical. Já a Bíblia
apresenta um equilíbrio, em que Deus está ativo na História e na sua criação,
mas não é idêntico a elas.
– Eu sei muito bem o que é
Neoplatônico. E sei que não acreditavam no mal e negavam que este pudesse ter
sua real existência no mundo. Você fala do mal a toda hora e sempre me acusa
como sendo o mal. Os neoplatonistas diziam que algumas coisas eram menos
perfeitas que outras. Assim, o que você chama de mal os neoplatônicos chamam de
imperfeição, de ausência de bem. Para eles, a perfeição e a felicidade eram a
mesma coisa e poderiam ser adquiridas pela devoção filosófica. Se assim fosse,
a felicidade dos homens não necessitaria a espera de uma pós-vida, como diz a
doutrina cristã e tantas outras. E agora o que tem a me dizer?
– Já que você voltou a esse
assunto, continuo achando-o apenas um desnecessário à humanidade. Se não quer
que o chame de mal, então o chamarei de ser imperfeito. O que acha?
– Seu inseto desprezível! Quer
ficar na filosofia, tudo bem! O que eu acho é que seu Deus não passa de uma
criação dos homens para justificarem seus erros. Deus pertence apenas ao
domínio das ideias e não tem base material. Deus é como uma obra de arte, só
que, em vez de ser uma representação figurativa, é uma representação do
consciente coletivo dos humanos em que as formas e os conteúdos são
características de diferentes culturas em diversas épocas históricas.
– Para nós humanos é
difícil compreender a existência de Deus, imagino para Você! – exclamou Bangse.
Deus está acima de qualquer compreensão. Sei que não podemos limitar Deus
apenas como origem de tudo que já existe.
– Se sabe, por que limita?
– disse a Voz, ao mesmo tempo que gargalhava.
– Sei que não posso
personificá-lo, como muitos o fazem ou fizeram. Não posso limitá-lo a uma
simples compreensão ou mesmo negar sua existência, o que seria um grande erro.
Mas posso viajar além do tempo e imaginar-me e contemplar-me com o divino. Isso
me permite citar a frase de Plotino§: "A aspiração do homem não
deveria limitar-se a não ser culpado, mas a ser Deus”. A
frase de que mais gosto de Plotino são suas últimas palavras, ditas ao médico
Eustóquio: "Procurai sempre conjugar o divino que há em vós com o
divino que há no universo".
A Voz deu uma grande e
longa gargalhada e disse:
– Afinal! Você é Platônico
ou Plotino?
– Plotino fez a seguinte
analogia: "Imagine uma enorme fogueira crepitando no meio da noite. Do
meio do fogo saltam centelhas em todas as direções. Num amplo círculo ao redor
do fogo a noite é iluminada, e a alguns quilômetros de distância ainda é
possível ver o leve brilho desta fogueira. À medida que nos afastamos, a
fogueira vai-se transformando num minúsculo ponto de luz, como uma lanterna
fraca na noite. E se nos afastarmos mais ainda, chegaremos a um ponto em que a
luz do fogo não mais consegue alcançar-nos.
Em algum lugar os raios luminosos se perdem na noite e quanto mais estiver escuro
menos enxergaremos. Nesse momento, contornos e sombras deixam de existir. Agora
imagine a realidade como sendo esta enorme fogueira. O que arde é Deus – e as
trevas que estão fora é a matéria fria, onde a luz está fraca, da qual são
feitos homens e animais. Junto a Deus estão as ideias eternas, as causas de
todas as criaturas. Sobretudo, a alma humana é uma 'centelha do fogo'. Mas por
toda parte na natureza aparece um pouco desta luz divina. Podemos vê-la em
todos os seres vivos; sim, até mesmo uma rosa ou uma campânula possuem um
brilho divino. No ponto mais distante do Deus vivo está a matéria inanimada”.
– Assim, para Plotino,
tudo que vemos tem um pouco de mistério de Deus. Para ele, podemos ver o brilho
dessa coisa num girassol ou numa papoula. Percebe-se mais desse insondável
mistério numa borboleta quando pousa em cima de um galho ou em um peixe no
aquário. – continuou Bangse. – Mas o ponto mais próximo em que encontramos Deus,
segundo Plotino, é dentro de nossa própria alma. “Apenas dentro da alma é que
podemos reunir-nos com o grande mistério da vida”. Isso me faz lembrar as
imagens remetidas ao mito da caverna de Platão. Porém, este filósofo é
dualista. Platão faz oposição a Plotino pelo dualismo entre o espírito e a
matéria. Plotino nos aponta para a realidade de que o “isto” está também ligado ao “aquilo” (como também falava Buda), que o universo é uma imensa
rede de relações onde tudo tem sua razão de ser no conjunto, no “holos”. Tudo está ligado a tudo, e
tudo é “Um”, pois tudo concorre
para o andamento da obra de Deus. Até mesmo as sombras têm uma tênue parte dessa
"Unidade".
A VOZ: TREVA DOS HOMENS
– Eu conheço o mito da
caverna! – exclamou a Voz. Platão em seu dialogo “A República” diz que Sócrates
falou: “Imaginemos homens que vivam
numa caverna cuja entrada se abre para a luz em toda a sua largura, com um
amplo saguão de acesso. Imaginemos que essa caverna seja habitada, e seus
habitantes tenham as pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não possam
mudar de posição e tenham de olhar apenas para o fundo da caverna, onde há uma
parede. Suponhamos ainda que, bem em frente da entrada da caverna, exista um
pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro, se movam homens
carregando sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e madeira,
representando os mais diversos tipos de coisas. Suponhamos também que, por lá,
no alto, brilhe o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna produza ecos e que
os homens que passam por trás do muro estejam falando de modo que suas vozes
ecoem no fundo da caverna”.
– Exatamente isso! – exclamou Bangse, gostando do discurso da Voz.
Sócrates, ao dizer esse mito, certamente sabia que os habitantes da caverna
nada poderiam ver além das sombras das pequenas estátuas projetadas no fundo da
caverna e ouviriam apenas o eco das vozes. Porém, por nunca terem visto
outra coisa, eles acreditariam que aquelas sombras, que eram cópias imperfeitas
de objetos reais, eram a única e verdadeira realidade. E que o eco das vozes seria
o som real das vozes emitidas pelas sombras. Supondo que um daqueles habitantes
consiga soltar-se das correntes que o prendem, ao voltar-se para a luz
começaria a subir até a entrada da caverna. Desse modo, meio que perdido, ele
começaria a se habituar à nova visão com a qual se deparava. Habituando
os olhos e os ouvidos, ele veria as estatuetas moverem-se por sobre o muro e,
após formular inúmeras hipóteses, por fim compreenderia que elas possuem
detalhes mas não seria possível vê-las na sua antiga posição na caverna. Assim,
ele compreenderia que a luz do sol refletida em todas as coisas seria a
realidade de todas as outras coisas.
– Se ele fosse como você, provavelmente
voltaria à caverna para libertar seus amigos da ignorância e das correntes que
os prendiam. Porém, ao voltar, todos da caverna o achariam louco por não acreditar
na realidade que eles pensam ser a verdadeira (a realidade das sombras).
Portanto, eles o sentenciariam colocando-o como indigno, desprezando-o. É isso
que você quer, meu caro Bangse?
– Muitos dos seres humanos fizeram assim. Veja Cristo!
– Lá vem você com seu Cristo e seu Deus. Nunca conseguirei entender
esse seu Deus! – disse a Voz.
Bangse
voltou a Plotino:
– Numa extremidade,
Plotino chamava o Uno de Deus.
Na outra extremidade, estaria aquilo que ele mencionava de reino das sombras,
aonde apenas uma fração ínfima da luz divina chegava. Ele usava essas metáforas
apenas como uma figuração didática quando lecionava. Dizia que as trevas não
tinham uma existência concreta, era apenas a ausência momentânea da Luz Divina.
– O que quer dizer isso? –
perguntou a Voz.
– Para mim, tudo que eles
diziam da escuridão, das sombras, encaixa-se a Você.
– Você é muito mais louco
que eles! Não sou psicólogo, mas acredito que seu problema é ressentimento
reprimido. Você não passa de um infeliz, um fracassado, e quer culpar-me por
isso? Não! Isso eu não aceito. – falou a Voz.
– Para mim, ressentimento
é uma mágoa introjetada, algo que sufoca a alma, algo que não podemos colocar
para fora em
desabafo. Talvez , até fiquei ressentido com você. Porém,
agora, não posso chamar isto de ressentimento, pois minhas palavras serão públicas.
Qualquer pessoa que queira terá acesso a estas palavras.
– Mais uma vez blasfêmia!
Eu sou o maior poder e não admito que essas palavras saiam desses escritos. Não
se atreva.
– Eu vou um pouco mais
além e digo: “Você é a treva dos Homens,
a ausência total de luz”; “Você é a sombra que serve o Homem ao mesmo tempo que
é o abismo que o constrói”. “Você é a caverna de Platão que aprisiona e submete
o homem ao crepúsculo das correntes”. “Você é a matéria fria e obscura que
remete o homem à ignorância nas trevas”. “Você e os Seus são os piores dos
piores, são os parasitas do homem que consomem toda sua possível luz.” “Sem Você,
a felicidade de um homem contagiaria a todos, impregnando-os de humanidade, de
sentimentos elevados. Teríamos um homem possuidor de magnanimidade, capaz de
sentir a dor, suportá-la e eliminá-la, porém nunca a guardaria em seu coração.
Um homem capaz de dividir a felicidade, compartilhando-a com o outro e com a
natureza. Um homem capaz de subjugar sua alma, incluindo em si um sentimento de
benevolência, de paz interior, de serenidade, de conciliação com tudo aquilo
que o cerca. Um homem capaz de amar a si, ao outro, a natureza e aos outros”.
BANGSE: O EQUILÍBRIO E A ALMA
Bangse
acordou mais uma vez após uma noite de insônia, e seus pensamentos
voltaram.
– Que aflição nas pernas! Não tenho
dor, pareço bem, mas não consigo dormir.
Em
seguida, levantou, foi até a cozinha, bebeu um copo com água e continuou: – Devo ter a tal de síndrome das pernas
inquietas§. – disse, enquanto olhava para um
pote de vidro vazio. – Não há nada neste pote, se eu tirar todo ar, bactéria
etc., deixarei somente o vácuo§. No momento em que quebrasse o vidro,
o nada deste pote absorveria o tudo a seu redor. Seu vazio§seria
preenchido por toda matéria à sua volta.
Depois, caminhou até o banheiro
olhando no espelho.
– No espelho há meu reflexo, mas há
um vazio no espelho, apenas o reflexo. O que tem a ver o pote com o espelho?
Qual a relação entre os dois? Ambos não representam a realidade. Não há espaço
no espelho, apenas o reflexo. No vácuo do pote, em seu vazio, há espaço. Há um
tempo no reflexo do espelho, mas não há tempo no vazio. Kant§
diz que podemos conhecer apenas os fenômenos, porém nunca podemos conhecer, “nem
a posteriori nem a priori” §, as coisas como são em si mesmas. Ele
mesmo pergunta: “O que podemos conhecer?”
Pensativo, Bangse não conseguiu
pegar no sono; enquanto massageava as pernas, continuou:
– Essa é exatamente a
pergunta que orienta a discussão da Crítica da razão pura.
Kant responde que podemos conhecer apenas os fenômenos das coisas, que estamos
limitados pelas formas de conhecer a priori as intuições de espaço e
tempo, e que conhecer a essência das coisas é impossível. Logo, segundo ele,
não podemos conhecer a coisa em si.
Entre constantes pensamentos, Bangse
dormiu algumas horas antes de despertar para lecionar.
Mais uma noite chegou. Bangse
deitou-se no mesmo horário como era seu costume. Aproximadamente duas horas
depois, pegou no sono, mas não por muito tempo.
– Essa inquietação nas
pernas me acordou mais uma vez. Não é algo psicológico; se fosse, acho que eu
deveria estar acordado para senti-la. É engraçado a inquietação me despertar.
Que chato! Estava dormindo tão gostoso. Deixe-me olhar as horas; de agora em
diante anotarei as horas em que acordo durante a noite. Demoro a dormir e
quando durmo acordo cansado, atordoado e não consigo ficar na cama. Isso é
brincadeira! Meu horário de acordar é às cinco horas e trinta minutos; deito para
dormir entre dez e dez e meia. Teoricamente durmo sete horas. Porém, na
prática, acredito que tenha dormido em torno de três a quatro horas. É pouco! O
que me perturba não é o dormir, e sim a inquietação nas pernas. Costumo acordar
dois minutos antes de o celular despertar. Quando ele me acorda, imediatamente
interrompo sua música irritante e vou ao banho.
Porém,
Bangse se levantou durante a noite com mais uma crise de inquietação nas pernas
e foi direto ao espelho.
– Estou ficando velho. – Caminhou
em direção à cozinha do apartamento e começou a olhar o pote de vidro vazio – Por
que sou tão fascinado pelo vazio, pelo nada? Abriu o pote, girando a tampa para
um lado e para o outro, no sentido horário e anti-horário; depois fechou e abriu-o
novamente.
– Heidegger§,
Sartre§, Schopenhauer§,
Nietzsche§, como eram sensacionais em seus
pensamentos filosóficos! Há pessoas famosas na pintura como Leonardo Da Vinci§.
Naquela época, Leonardo já estudava os cadáveres, dissecando-os, e inventou
aquela parafernália de máquinas engenhosas. Acredito que o sucesso de suas
pinturas estava no equilíbrio. Quando vejo uma réplica de suas pinturas, noto a
ideia central, as figuras dominam o meio da tela, tudo parece proporcional.
– Isso me faz lembrar
Mozart§: em suas músicas há um equilíbrio no
vai e vem das notas. Ele sempre consegue achar mais uma nota; quando você acha
que não há mais o que modificar na sequência de seu arranjo musical, engana-se,
nele jorrava inspiração espontânea. Pensando dessa forma parece-me que a
vontade de potência aparece em um tipo de jogo de forças no conjunto de sua
obra. Seus quintetos até parecem uma explosão de energia, de forças
turbilhonando em todos os sentidos. Neste sentido, onde estaria o vazio, o
nada? Será que há um equilíbrio na vontade de potência nietzschiano? Tentemos
pensar de um modo simples: numa luta de cabo de guerra§,
quando as duas equipes se igualam em força, há um empate. A tensão no meio
equivale à soma das duas forças. Ali está o equilíbrio, o ponto zero, o nada.
Se dobrarmos a corda e a colocarmos em volta de um mastro e os dois grupos
continuarem puxando, a força exercida pelo mastro será igual à soma dos dois
grupos, imagine fazendo isso algumas vezes! Teríamos muitos pontos de
equilíbrio, pontos zero, pontos no nada distribuídos nas pontas. A música de
Mozart pertenceria a um vazio cercado de forças. É como o pote da cozinha
(imaginando que tivesse vácuo dentro), o vidro que cerca o vácuo é a inspiração
para as divinas melodias. Isso me permite pensar que é na imensidão do vazio
que se encontram as estrelas. Parece-me uma frase um tanto poética e pouco
filosófica, mas justificaria um equilíbrio na vontade de potência nietzschiana,
daria sentido ao vazio na complexa harmonia musical de Mozart. – Em seguida,
Bangse pegou no sono.
Eis
que surgiu mais um amanhecer, seguido de longa noite de insônia.
– Não adianta, tenho que sair
da cama. – Olhos cansados, Bangse movimentou um pouco as pernas, em seguida fez
algumas massagens. – Vou ler um pouco de Schopenhauer. É incrível como ele
analisa a estética transcendental de Kant.
Após ler por aproximadamente duas horas, dirigiu-se
até a cozinha, bebeu um pouco de água e voltou a olhar o pote vazio:
– Segundo Schopenhauer em
sua analise a Kant, o espaço e o tempo constituem as formas de nosso intelecto,
ou melhor, formas que não foram adquiridas pelas vias da experiência, não vindas
de fora, mas são partes presentes de nosso intelecto, do nosso ser. Esta me
parece a crítica da razão pura de Kant, quando ele afirma que nosso
conhecimento possui duas fontes: a receptividade das impressões e a
espontaneidade dos conceitos. A primeira seria a capacidade de receber
representações e a segunda, de conhecer um objeto. Isso me lembra Vygotsky§
com sua teoria do desenvolvimento do indivíduo como resultado de um processo
histórico-social, enfatizando o papel da linguagem. A aquisição do conhecimento,
segundo Vygotsky, viria da interação do sujeito com o meio, das relações entre
o pensamento e a linguagem. É certo que ele propõe uma visão de formação das
funções psíquicas superiores como “internalização” mediada pela cultura. Porém,
essa concepção fundamenta sua ideia em relação às funções psicológicas, da
linguagem e da memória, mas há algo maior, o cérebro humano, um imenso vazio
que permite a construção do indivíduo humano a partir do nada. Não há um
instinto! Hipoteticamente a consciência é um instinto.
– Mas o que é a
consciência? A alma, não no sentido religioso, e sim, como diziam os gregos da
“psiké”, a alma como consciência do ser humano, como identidade do sujeito. Conforme
dizia Platão, em sua obra Fédon, uma alma que não se limita a ser
entendida como o princípio da vida, mas como o princípio do conhecimento; como
substância independente do corpo, eterna. Uma alma que pertença ao mundo das ideias.
Platão afirma que as ideias têm uma realidade objetiva substancial. O corpo
platônico pertence ao mundo sensível ou físico, sendo este mutável; a alma é
eterna, aspira a libertar-se dos corpos e retornar ao mundo das ideias. Platão
acreditava na reencarnação das almas.
Bangse balançou a cabeça e
segurou com uma das mãos o queixo.
– Incrível a observação de
Platão, dividindo a alma em três partes: A “alma racional” seria uma alma
superior que se destina ao conhecimento das ideias, localiza-se na cabeça e tem
uma virtude principal, a sabedoria. A “alma irascível”, associada à vontade,
dando ao homem o ânimo necessário para enfrentar os problemas e os conflitos,
localiza-se no peito e tem uma virtude, a força. E, por fim, a “alma concupiscente”
seria a mais baixa de todas, constituída pelos desejos e necessidades básicas,
localiza-se no ventre e tem como virtude a moderação. Acredito que, se assim
fosse, Platão conseguiu um equilíbrio entre as três “almas”. Um equilíbrio que
complementa o homem como um todo.
Após
mais uma noite de reflexão, Bangse caiu no sono.
A PAZ E O
“CONFLITO REPULSIVO”
No outro dia, como de
costume, Bangse foi para cama entre dez e dez e trinta. Pensativo, refletindo
sobre seu dia, rolou para um lado e para o outro até adormecer. Pouco mais de
duas horas se passaram e a inquietação nas pernas fez com que acordasse.
–
Deixe-me levantar senão explodirei nesta cama.
Foi até a sala, sentou no
sofá, ligou o aparelho de televisão enquanto massageava as pernas tentando
tirar o incômodo. Minutos depois, desligou a TV e pôs-se a pensar:
– O que mantém a saúde do
corpo é o equilíbrio, é a situação zero. Se eu tomar determinada vitamina mais do que necessito,
certamente me causará um problema de saúde.
A seguir, Bangse ligou a
TV novamente por uns dois minutos e desligou-a dando continuação ao seu pensamento:
– Quando minha pressão arterial aumenta ou
diminui, com certeza causará danos a meu organismo. Se minha alimentação é
inadequada ao meu ritmo de vida ou vice-versa, meu corpo responderá em igual proporção;
um desequilíbrio causando o excesso elevará a gordura em meu corpo, a escassez
do alimento me levará à desnutrição. Quando penso acima na mesma proporção é
sinal de equilíbrio, logo, num paradoxo, a resposta do corpo é equilibrada para
mais ou para menos. Isso me permite dizer que há um espaço vazio que antecede o
equilíbrio para que o organismo humano se autoequilibre em seu desequilíbrio§.
Ligou
mais uma vez o aparelho de televisão, tentou prestar atenção no programa
exibido em determinado canal mas notou que os pensamentos retornavam.
– Vou desligar novamente a TV. Não consigo
prestar atenção em nenhum programa. Logo deu continuidade a sua reflexão: –
Para mim o corpo humano é o equilíbrio entre o macro e o micro. Sob o ponto de
vista biológico, fisiológico, o macro é o conjunto de músculos, ossos, órgãos
internos e externos, até mesmo os cinco sentidos, etc. No sentido sociológico,
o macro é a interação do corpo com a natureza, com o conjunto da vida em si. Sob
o ponto de vista biológico e fisiológico, o micro entraria como a
neuroanatomia.
Bangse caminhou até sua
estante de livros e pegou um livro de neuroanatomia, que já havia lido algumas
vezes. Andou novamente até o sofá e começou a ler.
Após aproximadamente uma hora
e meia, largou o livro ao lado e pôs-se a pensar:
– Acredito que a
complexidade do sistema nervoso, da bioquímica, da micro-anatomia constitui o
individuo como único. Isso não quer dizer que a macro não constitui tal
característica, porém – olhou para o livro, lembrando o que lera na primeira
pagina, pegou o livro e leu em tom baixo: – é o “sistema nervoso que coordena
as atividades do organismo; integra sensações e ideias, conjuga fenômenos da
consciência; é ele que adapta o organismo às condições de momento. Ele é
formado por elementos altamente diferenciados em excitabilidade e
condutividade, as células nervosas, e por diferentes elementos de sustentação e
de função trófica§ que, em conjunto, constituem a
neurologia§”.
– Muito bem, o que podemos
pensar da microssociologia? Como poderia enquadrá-la neste momento de reflexão?
Sei que a microssociologia lida com as práticas discursivas sob uma perspectiva
interacional, isso é o que entendi de Simmel§.
Ele é feliz quando na análise dos fenômenos no nível microssociedade desenvolve
a tradição conhecida como formalismo, que estabelece como prioridade os estudos
das formas. Esse sociólogo distingue muito bem as formas e os conteúdos.
Segundo Simmel, é a partir do estudo das formas que podemos entender o funcionamento
da vida social. Ele encontrou aqui um ponto de equilíbrio. Isto me permite
dizer que o homem inteiro (social, alma, corpo, grupo, ética, moral, religião,
etc.), em todo seu ser, não está isento da vontade de potência. Porém, é no
âmago do vazio, do seu equilíbrio, é que se encontra a paz internalizada em sua
plenitude. É em seu modo de ser que a vida lhe é dada. Dada não no sentido de
doação, de merecimento, e sim no sentido de equilíbrio. Um exemplo: se eu
chutar uma pedra, dependendo do tamanho da pedra, meu pé dói e a pedra rola; se
eu não chutar o nada permanece, o equilíbrio se mantém. A pedra continua no
lugar e meu pé, “são e salvo”.
Bangse começou a pegar no
sono, mas não quis parar de reformular sua ideia.
– Está me dando sono, mas
não posso parar agora. Porém, quem seria este homem? Seria o super-homem
nietzschiano? Não! Seria exatamente o oposto: um sujeito nem muito bom, nem
muito ruim; não muito feliz, nem tampouco infeliz. Seria um sujeito com
equilíbrio interior: um sujeito que dose e misture nas proporções certas,
conscientemente, seu equilíbrio interior entre o bem e o mal, entre o justo e o
injusto. Um sujeito que peça licença antes de passar, para que a licença lhe
seja dada. Um sujeito que peça desculpas, para que seja desculpado. Um sujeito
que dá licença, que desculpa. Isso não é religião, é apenas um modo de ser que
gera o equilíbrio entre os homens. A harmonia, a paz entre os homens, situa-se
exatamente no equilíbrio.
Bangse ergueu-se, mexeu um
pouco as pernas, agachou e levantou ao mesmo tempo em que seus pensamentos
continuaram:
– Quando a vontade de potência
vem à tona, o poder, as forças, as quais querem sobressair sobre as outras,
geram o que vou denominar agora como um “conflito repulsivo”. Neste, as
guerras, as lutas de classes, o racismo, o preconceito, a violência exacerbada,
etc. incomodam um modo de ser equilibrado. A perda, a derrota, não seria apenas
a perda e a derrota, seria a dor. Uma dor que causa doenças somáticas em
qualquer tipo de homem. O conflito balanceado, harmonioso num gráfico que sobe
e desce, é bem-vindo. Assim, esse conflito se encaixa nas músicas de Mozart, se
encaixa na pintura de Leonardo Da Vinci. A paz necessita do conflito. A paz não
é docilidade, mas também não é perversidade. A paz está em intersecção com o
conflito, mas não com o “conflito repulsivo”. A paz e o conflito se cortam em
um plano de equilíbrio. A paz tanto pertence à alma em si quanto à sociedade em
si. Elas se cortam e se conjugam como a alma com o corpo. A alma equilibrada dá
equilíbrio ao corpo. O corpo equilibrado é um corpo são. O homem equilibrado
equilibra aqueles que o cercam. Uma sociedade equilibrada leva paz e harmonia a
todos como semelhantes, como iguais, como seres humanos. Uma sociedade
equilibrada mantém a natureza equilibrada. A natureza equilibrada retribui
dando equilíbrio à alma.
Bangse ouviu o despertar
de seu celular; notou que praticamente não havia dormido a noite toda e correu
para o banho. No final da tarde, voltou cansado para casa e tirou um cochilo de duas horas.
Ao
acordar, resolveu comer um lanche, como era seu costume. Ele não gostava de
jantar; tinha o hábito de comer assistindo aos telejornais ou programas de
animais ou aos que mostravam outras culturas.
BANGSE E O “Qi PLENO”
No dia seguinte, Bangse foi
dormir mais cedo, às nove e meia. Porém, quando era uma hora da madrugada,
acordou com suas inquietações nas pernas.
– Hoje não vou levantar, massagearei
minhas pernas aqui. E depois de um tempo: – Não aguento! Tenho que me levantar.
Dirigiu-se ao espelho e
parou. Pensando que seriam apenas alguns instantes em frente ao espelho, acabou
por ficar mais de três horas, ali, parado em pé.
– Nós somos aquilo que fizemos, Nós colhemos aquilo que
plantamos. Plantem a guerra e colherão a guerra. Plantem a paz e colherão a
paz. Acredito que essa é a forma certa de pensarmos. Se é que existe uma forma
certa de pensarmos! As palavras paz, o nada, o equilíbrio são sinônimos. Elas
se equivalem: há uma harmonia nelas, há um equilíbrio nelas.
Bangse começou a rir
sozinho e continuou:
– Espero não estar sendo
“Búdico” neste momento. Pensei nessa palavra no sentido de Budismo. Isso me faz
refletir sobre Schopenhauer; afinal foi ele quem introduziu o Budismo e o
pensamento indiano na metafísica alemã. Conhecido por seu pessimismo
exacerbado, entendia o Budismo como uma confirmação dessa visão. Ele
influenciou fortemente o pensamento de Nietzsche. Talvez, ele não tenha
percebido que o nada nada mais é que o equilíbrio, a paz.
Não enxerguemos isso como budista, kardecista, ou mesmo pertencendo a qualquer
outra religião. Para vencer a vontade humana e ordenar a tempestade das emoções
humanas e a turbulência da consciência, da alma, da psique, do intelecto humano,
é necessário o equilíbrio. O equilíbrio é a força da vida. Falar em força
parece-me nietzschiano; não acho outra palavra para substituir força. Mas acho que a palavra essência
me cai melhor. Se eu unir as duas palavras, creio que flui melhor: “O
equilíbrio é a forçaessência da vida”, – entendendo força como
toda ação, energia, poder, causa e efeito capaz de produzir alteração na forma
ou movimento de um corpo em equilíbrio, associada à essência, aquilo que
constitui a natureza de uma coisa, do ser, da substância. Acredito que há uma
harmonia real nessas duas palavras. Ela sintetiza bem a minha ideia do nada, de
uma energia plena em paradoxo: sem energia. Darei um nome para forçaessência,
chamarei de “Qi Pleno”. Mas não quero
dizer que “Qi§” seja uma abreviação de Quociente de
inteligência. Isso porque, na sua tradicional forma, o “Qi” no ideograma chinês
frequentemente é traduzido como “ar”, “respiração”. Sua imagem é a imagem do
vapor subindo do arroz. Agora que dei esse nome tenho que defini-lo. Deixe-me
ver!
Bangse parou certo tempo
no vazio e concluiu:
– “Todos os meus
pensamentos conscientes e inconscientes, todo emaranhado das relações, toda
vontade de potência harmoniosamente associada com ‘forçaessência’§natural,
biológica, física, sociológica, existencial, matéria e não matéria, ilusão; do
big-bang ao big-bang em seu infinito, big-bang ao big-bang promulgados§
com o eu em absoluto equilíbrio” §. Creio que consegui explicar.
– Não vejo clareza em suas
palavras! – exclamou o narrador. Que homem é esse, ou melhor, quem é assim?
Como agir nesse absoluto equilíbrio, no “Qi Pleno”?
– Um pescador, ao passar
seus conhecimentos aos mais jovens, vive em equilíbrio; porém, quando ele tem a
humildade em aceitar o ensinamento de um jovem, o qual trouxe nova tecnologia à
pesca favorecendo a comunidade, age em “Qi Pleno”. E quando ele processa toda
informação, aceita, pratica e depois descobre outra forma, juntando seus
conhecimentos com a nova tecnologia que favoreça ainda mais a comunidade,
transmitindo ao outro o que acabou de descobrir; esse homem é “Qi Pleno”.
– E daí? – indagou o
narrador.
– O “Qi Pleno”, na prática,
é aceitar as mudanças, transformar-se e ser transformado, é doar e permitir a
doação do outro. É expor sua opinião, aceitar a do outro e transformar tudo
naquilo que acredita. É viver em harmonia com a vida, sem ser o dono da
verdade, nem tampouco se achar inferior aos mais belos e grandes homens que a
humanidade viu e verá. É admirar os grandes homens sem medo de expor sua
opinião ao mesmo tempo que aprende com eles a autoconhecer-se e conhecer a vida
em si. É respeitar-se, filtrar-se, expor-se; é transgredir, ir além do que é
permitido, e simultaneamente receber com agrado os ensinamentos, seja de
felicidade seja de tristeza, que estão por vir. É desbastar a saliência,
procurando a melhor forma de viver consigo mesmo, com o outro e com a natureza.
Bangse continuou fixo ao
espelho, totalmente fora do ambiente. Isto é, ele não se via no espelho, apenas
pensava, num profundo transe consciente de seus pensamentos.
– Viver apenas no
consciente seria impossível, viver no inconsciente seria loucura. As forças da
natureza buscam sobressair umas às outras, mas, no fim, elas acabam resistindo
valorosamente às tempestades da existência até caírem no vazio. É no vazio do pote
que a essência do equilíbrio não se submete a qualquer tipo de força. Mas, em
sua refinada profundeza, quando o explodirmos, seu vazio suavemente penetra em tudo,
entra em todas as forças, ao mesmo tempo em que é consumido por elas. As
modificações existentes após penetrarmos o vazio são a chave mestra do ciclo de
toda existência.
– Passando toda essa
parafernália de palavras para o cotidiano das forças biológicas, físicas,
naturais, animais e humanas, podemos traduzir que as forças possuem um desejo
(vontade de potência), aprisionado no tempo e no espaço; por outro lado, o
vazio, o nada, é livre. Livre em sua expansão, livre do tempo e do espaço, não
é prisioneiro da lei da mortalidade. No vazio há espaço para todos, há mais
vazio no universo que todas as forças possíveis e imaginárias. Se há um Deus,
ele situa-se, num paradoxo, no vazio, no nada da existência.
Bangse retornou a si,
percebendo seu corpo em frente ao espelho.
– Nossa! Que horas são?
Foi para o quarto e, pegando
o celular, olhou as horas. Notou então que ali ficara por mais de três horas. Ao
deitar, começaram os pensamentos em formato de conselhos:
– Aqueles que desejam
vitórias, conquistas procurem o equilíbrio, a vontade de fogo, temperada com
uma pitada de paz interior. Isso não lhes trará a felicidade completa, porque é
humanamente impossível, mas lhes trará menos sofrimento, menos amargura e mais
integridade em relação ao seu viver. Um viver inteiro e íntegro. Um viver
equilibrado no intelecto, no social, em harmonia com a natureza.
Bangse se levantou, caminhou
em direção à sacada do apartamento, olhou o céu poluído, recoberto de nuvens, e,
mais embaixo, viu os prédios e as casas num equilíbrio, no silêncio de sua
mente. Ao sair da sacada, caminhou até o quarto e deitou até cair no sono.
Assim,
entre noites de insônia e algumas anotações durante o dia, Bangse refletiu sem
parar sobre vários assuntos.
OS
JOVENS DO SÉCULO XXI
Os jovens são construídos
de forma anarquista querendo o poder para si. Isto é, para eles pouco importam
os políticos, as leis ou os impostos. Anarquistas porque para esses jovens não
há governo, existe apenas o poder comunitário baseado na violência exacerbada e
no crime: “Eu tenho a liberdade e não cedo à opressão”. Vivem sem a ideia de um
governo. Assim, não há ideologia, têm apenas um modo de ser egoísta e solitário
em que fazem o que acreditam ser o correto. Sua intenção não é destruir para
criar, é apenas destruir.
Esses jovens impõem suas
próprias leis, pegam seu dinheiro, sequestram a própria família, levam seus
bens, por vezes os condenam à morte, executando-os. Eles não são como os
anarquistas espanhóis do final do século XIX e início do século XX. Não têm
ideais libertários ou ações de assassinato de líderes políticos. Não pensam em
um equilíbrio entre a ideia do indivíduo acima de tudo e uma economia coletiva
para todos. Há apenas o “ditadurindividualismo” §,
uma característica herdada com traços da recente ditadura, associados ao poder
da banalização da violência.
A ALMA DO ESTADO
Aqueles que pensam que o
Estado não tem uma alma estão muito enganados. O Estado somente é corrompido
porque assim ele permite. Ele corrompe os corruptores e alicia aqueles que
estão sob sua ordem direta. Ele devora aqueles que o desafiam. Afasta-se daqueles de quem não tem mais
necessidade. Ele suga os que acreditam que estão no comando e rejeita os que
querem levá-lo para o bem comum. Ele dispensa os flagelados. Está em comunhão
momentânea com aqueles que acreditam ter o poder sobre ele.
O Estado é sarcástico com
aqueles que não lhe interessa punir no momento.
Pune os inocentes e libera os culpados, por vezes pune os dois, por
vezes liberta os dois, às vezes incrimina a si próprio para enganar tanto os
inocentes quanto os culpados. Ele tem vontade própria, tem desejos. Sabe quando
deve errar e por vezes erra sem saber que errou. Escolhe seus amigos, mas não é
amigo de ninguém. Ele se acha eterno, indestrutível, porque sabe que, quando é
derrubado, assume outra personalidade. Deixa-se enganar para consumir o
enganador; é cínico quando abraça forte o mais necessitado. Ele se conchava com
outro Estado, às vezes briga com o outro, às vezes invade o outro e chora
quando o outro se apodera dele.
O Estado se acha
importante para os seres humanos; acredita que, sem ele, os seres humanos
jamais existiriam como civilização. Sem ele, não existiria um modo de vida
entre os seres que nele habitam. Ele constrói você e o destrói, você é
totalmente substituível. Ele cuida de sua saúde e o apunhala pelas costas. Os
políticos que acreditam ter o comando estão sufocados em suas entranhas,
amargurados pela sede de poder, ao mesmo tempo em que Ele vomita sobre eles.
Ninguém ou nada tem sua posse. Tudo nele é passageiro. Todos e tudo que nele
habitam estão contaminados, nem a religião escapa de sua contaminação, tamanho é
seu poder.
Bangse anunciou:
– Com a palavra, o Estado!
– Bem-aventurados os
guerreiros “bajuladores”, pois estes morreram em meu nome; levantarei estátuas
de bronze ou pedra em seus nomes. Entrarão para a História como heróis
nacionais.
Como sempre, o Estado
continuou com sua arrogância:
– Bem-aventurados os “bajuladores”
intelectuais, pois estes terão centenas de livros vendidos, dos muitos
publicados. Ganharão espaço na mídia, ocuparão os melhores cargos nas
universidades públicas e privadas. Terão espaço em todo cargo público,
independente da linha de governo ou do regime político.
Em seguida, dirigiu-se ao
povo:
– Meus bem-aventurados e caros
compatriotas! Querido e amado povo desta nação! Venho com apreço, neste
momento, dizer que passamos por momentos difíceis e precisamos contar mais uma
vez com a colaboração de vocês. O Estado, neste momento histórico, se assim me
permitem dizer, declara a toda a população, sejam ricos ou pobres: É importante
manter-se digna a nossa supremacia, pois somente assim lhes darei um sepultamento
digno de um homem livre que me respeitou e me amou durante toda sua vida.
E o Estado assim finalizou:
– Bem-aventurados os
políticos, eu sugarei a sua alma, a sua essência, até não existir mais nada de
vocês, nenhuma substância, nenhum fluido. Mas não se preocupem, pois o nome de
vocês se perpetuará por muitos e muitos anos. Tenho dito!
A
INQUIETAÇÃO DE BANGSE
– Vejamos como nosso corpo
reage ao estresse. Minha ansiedade em acordar causa esta inquietação nas
pernas.
Em seguida, Bangse levantou
e começou a caminhar repetidamente pelo apartamento entre a sala, a cozinha e o
quarto.
– Sei que devo
equilibrar-me, porque acredito fielmente que é no equilíbrio que existe a cura.
Apesar de ter lido na internet que a “síndrome das pernas inquietas” necessita
de tratamento médico, não me preocupo com ela na maior parte do dia. À noite
realmente ela me incomoda. Por um lado, é uma sensação horrível que não desejo
a ninguém; por outro me faz levantar, deixando-me acordado para pensar e
refletir sobre o nirvana, sobre o equilíbrio das coisas em si mesmas. O
engraçado é que na maioria das vezes não encontro palavras adequadas para o que
penso. Não consigo expressar-me no conjunto e com o vocabulário que possuo.
Bangse sentou por alguns instantes
e continuou seus pensamentos:
– Não consigo parar de
pensar no nada como um ponto de equilíbrio no universo das coisas. Como posso
saber se não estou louco? Acredito que tenho a resposta. Enquanto equilibrar o
mundo das coisas, dos impostos, do dia-a-dia, do trabalho, das contas, do trânsito,
da família, etc. e o mundo dos meus pensamentos, da minha madrugada, da minha
aflição nas pernas, estarei bem. Enquanto eu administrar esses dois mundos em que
vivo, equilibrar esse vulcão de momentos, acredito que ainda não estou louco.
Pelo menos, por enquanto! Ufa! Que bom!
Ele se levantou, caminhou
e seus pensamentos prosseguiram:
– A loucura está em minha
ansiedade: quando deito para dormir, não vejo a hora de despertar; quando estou
acordado durante o dia, no trabalho, não vejo a hora de dormir. Isso é
terrível! Eu sempre tenho que fazer a próxima coisa durante o dia. Se estiver numa
fila do banco, tenho pressa de ir à fila do caixa do mercado; se estou lecionando em um lugar, não vejo a hora de
chegar ao outro; se estou sentado, tenho de ficar em pé e vice-versa. Assim vai
e assim será até o dia em que eu morrer, ou quem sabe... Mas este sou eu, este
é o mundo em que vivo. Não é o mundo com que sonho, mas é o mundo em que vivo. Não
é o mundo que desejo, mas é o mundo que existe.
Bangse
acabou por dormir mais uma noite no sofá da sala.
O TRABALHO DE BANGSE
Nos
finais de semana, a insônia persistia, as pernas inquietas continuavam a
perturbar Bangse.
– No início adorava
lecionar, esta era minha vida. Parecia-me que nasci para lecionar. Com o passar
do tempo, meu entusiasmo foi diminuindo. Hoje, leciono por necessidade: preciso
do salário. Por outro lado, adoro escrever, pesquisar, entrevistar e analisar. O
cotidiano escolar me esgota significativamente. Prefiro estudar a lecionar, prefiro
ser aluno. Gosto de participar de palestras, como ouvinte ou como orador.
Caminhou até a janela; ao
abri-la, sentiu o frescor da madrugada no rosto.
– A obrigação de lecionar consumiu
meu entusiasmo. Neste caso especifico, acredito que a obrigação acaba com o
equilíbrio. Quando obrigamos nossos filhos ou nossos alunos a estudarem, pode
acontecer a mesma coisa. Tem que haver uma troca; daí, a necessidade da
política. Não é uma política partidária ou pública em relação à educação, e sim
gerar um equilíbrio, uma troca que desperte o prazer de aprender.
– Podemos comparar essa
situação com o casamento ou a união de duas pessoas. Por vezes, vemos casais de
velhinhos de mãos dadas tratando o parceiro com carinho. Diríamos que houve uma
troca durante suas vidas juntos, um equilíbrio, o ponto zero. Quando um dos
lados puxa mais forte há um desequilíbrio. Há cortes na relação, os quais nada
têm a ver com os conflitos que fazem parte de qualquer relação entre os seres
humanos. Há mágoas que ocasionam discórdias; em seu extremo, basta abrir um
jornal e ler os casos de assassinatos (marido que mata a mulher e vice-versa),
frequentemente relatados. O amor em excesso também gera o desequilíbrio, ele
deve ser equilibrado.
Bangse viajou nos seus pensamentos em meio à
sonolência e continuou:
– O que isso tem a ver com o desequilíbrio em
relação ao meu entusiasmo em lecionar? Minha resposta inicial é o salário; o
baixo salário na educação desanima qualquer um. É como um desequilíbrio no
amor. Porém, há outros fatores. Eu mudei! Para melhor ou para pior? Ao longo do
tempo, a escola e os alunos também mudaram. Para melhor ou para pior? Em meu
caso, as leituras, os cursos, os estudos ampliaram meus conhecimentos; aprimoraram
e refinaram meu intelecto. Não posso dizer o mesmo sobre os outros professores
porque não sei quanto tempo eles dormem.
Bangse começou a rir
sozinho porque praticamente não dormia; às vezes ficava lendo, na maioria das
vezes pensando nas noites em que deveria estar dormindo.
– Na educação, a situação
é cômica. O professor tem direito a bolsa mestrado ou doutorado, mas é preciso
estar matriculado e cursando para recebê-la. Para que ele esteja matriculado é
necessário pagar. Mas o professor não tem salário suficiente para sua
sobrevivência, imagine arcar com mais um gasto. A universidade pública, para
mestrado e doutorado, é restrita, tem poucas vagas. Normalmente, os bons alunos
da graduação são convidados para o
mestrado; ao terminarem, já garantem a vaga para o doutorado.
Em relação às escolas,
posso enumerar seus principais problemas:
1. A escola conta com uma
vasta biblioteca mas não tem sequer uma bibliotecária.
2. A escola possui computadores,
porém não faz a manutenção nem troca as peças; as cadeiras são quebradas, os mouses
roubados, etc.
3. O que o professor tem
em mãos é apenas o giz.
Dessa forma, fica difícil
lecionar neste país. E mais difícil é continuar gostando, porque não há uma troca. Há um verdadeiro
desequilíbrio entre tudo, especificamente entre o doar para lecionar e o
receber por doar.
Mais uma vez, a cabeça de
Bangse tombou para o lado e ele acordou num solavanco.
– Num paradoxo, analiso
que mudei para melhor e sinto-me pior, porque intelectualmente estou melhor e
em termos de motivação, pior. Da mesma forma a escola maquiou-se para melhor e
está pior. O professor não consegue cumprir seu papel de educador, necessita de
mais de um emprego para o sustento da família, de modo que não tem tempo de
reciclar-se.
Assim, como consegui
melhorar intelectualmente com mais de um emprego? Será que me maquiei para
melhor intelectualmente? Leio livros nos intervalos das aulas e nos finais de
semana; às vezes abonava faltas para assistir a uma palestra de meu interesse.
Porém, não consegui aplicar com os alunos o que aprendi. A resposta está em
verdadeiro desequilíbrio, tanto pessoal, como da escola. Qual a saída? Temos
que sair da mediocridade. Para isso, temos de pensar quem são nossos alunos.
Quais interferências externas agem sobre eles? Por que eles não respeitam professores
e a escola como um todo§? Professores equilibrados, escola
equilibrada; alunos equilibrados, sociedade equilibrada. Como? Parece-me
impossível.
Bangse foi para a cama e, massageando
as pernas, adormeceu depois de várias horas de insônia.
PRÉ-ADAPTAÇÃO HUMANA
Ao ler um livro sobre a
evolução humana, Bangse comentou:
- Sou fascinado por
livros. Os que tratam da evolução humana me chamam a atenção
Fixou o olhar num trecho
do livro e leu em voz baixa:
– “A evolução se restringe
apenas às oportunidades ambientais, mas também à capacidade que o grupo tem de
agarrar essas oportunidades antes que outros o façam. Não é de se admirar que
os habitantes das praias tenham originado o primeiro animal terrestre, porque eram
muito favoráveis a essa colonização” §.
Em seguida, parou de ler e
começou a refletir:
– Mais uma vez
presenciamos na natureza o equilíbrio. Nesse caso, entre a oportunidade e a
capacidade. Esse equilíbrio, provavelmente, ocasionou a pré-adaptação que gerou
as relações evolutivas entre os organismos vivos até chegarmos à diversidade
terrestre atual. Logo, não é no caos que surgem as espécies, e sim no
equilíbrio do acaso das necessidades. O equilíbrio é, pois, um meio natural de
evolução das espécies. A variedade de seres vivos, sejam eles vírus, bactérias,
sejam vegetais e a grande variedade de insetos e animais, surgiu em um momento
de equilíbrio. Não ignoremos uma “vontade de potência” inicial, uma espécie de
força brigando para sobreviver, porém é no equilíbrio que a espécie se destaca
e sobrevive. A própria cadeia alimentar é um equilíbrio. Se não houver um
equilíbrio, um ou mais espécimes serão extintos.
As concepções de Bangse sobre o equilíbrio no
processo de formação dos seres vivos remetem às relações entre oportunidades e
capacidades, propondo uma visão diferente de muitos filósofos e estudiosos na
área em questão.
– Portanto, não é do caos
que surgiu a vida, e sim do equilíbrio, do ponto zero, do “Qi Pleno”.
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA ALMA HUMANA
Acordado durante as noites
e com suas aflições nas pernas, Bangse pensava:
- A alma é construída
pelos sentidos; através deles o homem se autoestabelece na relação entre
pensamento e linguagem. Há um processo de internalização que se inicia no útero
da mãe. Ali, o feto toca os tecidos intrauterinos da mãe, ouve sons, esboça
dor, vê significativamente mais claro e mais escuro, tem em seu paladar o gosto
do líquido do útero. Acredito serem esses os primeiros sentidos do ser humano.
Não contente com seus
pensamentos iniciais, aprofundou-se.
– Por mais que haja vida
no recém-nascido, não existe vida com entendimento básico das coisas em si.
Decerto, há um processo de internalização para que o recém-nascido possa comunicar-se
de sua forma com o mundo exterior. Ele tem os sentidos, sente frio, fome, chora,
etc., mas não possui, ainda, o saber mínimo que lhe permita identificar-se com
o seu eu. Isto é, o recém-nascido não se conhece como filho de alguém. Ele
apenas está e quer.
Bangse acreditava que é
durante o sono que ocorre a aprendizagem.
– É no sonhar com aquilo
que se apresenta durante os momentos acordados, que o recém-nascido exerce uma interligação
com o mundo social, com as coisas, pessoas em particular, etc. ao seu redor. As
funções psíquicas durante os sonhos emergem e se interligam com sua mente,
levando-o a uma aprendizagem por associação progressiva, sistemática e interposta
pelos sentidos. Discordo de Vygotsky quando enfatiza que “a construção do
conhecimento ocorre pela interação mediada por várias relações com o real”. De
fato há “mediação”, porém não é somente ela que caracteriza os mecanismos intencionais
no recém-nascido. É no sono, durante o sonho que ele se vê como sujeito no
mundo dos adultos (adultos, no sentido de internalizada a identidade). O sonho
e a mediação colocam o recém-nascido defronte à realidade dos “adultos”,
fazendo com que, durante o processo de amadurecimento, se enfatize a construção
do conhecimento.
Para Bangse, o real se
inicia no inconsciente do feto durante os sonhos. Para ele, é ainda no útero
que o sonho ocorre como os primeiros indícios da relação do feto com o real.
– O processo voluntário
inicia-se durante os sonhos. É durante o sonho que há associações do real, e apenas
aquilo que pertencia ao inconsciente, gradualmente, é memorizado no consciente.
São os sonhos que revelam a realidade. Portanto, a função inicial dos sonhos no
recém nascido é, “e somente é”, o arquétipo, o protótipo da superação dos
mecanismos que invade de forma sutil o consciente.
Bangse considerava que a
semente da alma humana surge exatamente nesta ligação: o sonho mediador entre o
consciente e o inconsciente nas funções do real.
– É como se o sonho fosse a
água, e a semente o recém-nascido. A semente não seria uma árvore se não fosse a
água. O recém-nascido não seria um homem sem os sonhos. Á água é necessária à
vida toda da árvore, assim como o sonho à vida toda do homem.
– Jung§abordou os sonhos como realidades
vivas dos símbolos, com muitos significados em um complexo mecanismo de
interpretação. Concordo com Jung quando afirma que as fundamentais funções psíquicas
do homem são o pensamento, o sentimento, a sensação e a intuição; e que cada
uma delas pode ser experienciada de maneira introvertida, como também
extrovertida. Acredito que é no equilíbrio dessas funções que surge a razão.
– Quando há um desequilíbrio
que favoreça mais para o sentimento, ou para qualquer uma das funções psíquicas,
eu (Bangse) discordo de Jung quanto ao tipo de personalidade do indivíduo. Não
acredito que um sujeito com predominância da função do “pensamento” é grande
planejador e tende a se agarrar a seus planos e teorias, sendo ele lógico e
objetivo. Também não acredito que o sujeito em que predomine a função
“sentimento” tenha julgamentos de valores próprios do bem ou do mal, do certo
ou do errado, ao invés de julgar como faz o sujeito reflexivo (do pensamento).
Não creio também que o sujeito classificado como de função “sensação”
reporta-se àquele que pode videre (do latim: ver), tocar, cheirar, constituído
na percepção dos detalhes. Nem tampouco acredito que é na função “intuição” que
prevaleça o processamento das informações depressa, rapidamente com agilidade, etc.§
– Como mencionei, reforço
que existem tais funções psíquicas, porém isso não nos permite classificar o
sujeito por percepções individuais. O sujeito é inteiro, não podemos elaborar
julgamentos, valores, elaborados a partir de uma única função. Daí, a
importância de considerar o sonho como o fundamental burlador das funções. Os
sonhos enganam “o pensamento, o sentimento, a sensação e a intuição”, tudo se
iguala na forma de ser do homem inteiro. A personalidade não se forma através
das funções psíquicas individuais, e sim dos sonhos, do inconsciente. É no
inconsciente que tudo se revela nem para mais, nem para menos. É certo que
muitas vezes estamos acordados e inconscientes, porém é dormindo e sonhando que
o homem “sente” mas não “pensa”, tem “sensação” mas não tem “intuição”. Isso
porque tanto o pensamento quanto a intuição somente nos contemplam por meio da
razão. Portanto, as funções psíquicas apenas existem, porém, individualmente,
não classificam nem conceituam uma personalidade.
Bangse era grande
admirador do trabalho de Jung, considerando-o um dos psicanalistas melhor
conceituados e o que mais se aprofundou na mente humana.
– Jung§afirmava
que uma das funções do sonho é contrabalançar – mais uma vez o equilíbrio, tão considerado
por Bangse – a racionalidade do pensamento verbal com o pensamento em imagens. Para ele, o
sonho é a ponte entre o processo consciente e inconsciente, em que o consciente
contém menos emoções e imagens simbólicas se comparado ao inconsciente. Assim, o
sonho ajuda a equilibrar a diversidade de influências a que estamos sujeitos enquanto
consciente. Tais influências, frequentemente inadequadas, é que moldariam nosso
pensamento, nossa personalidade e individualidade. Dessa forma, o sonho,
segundo Jung, reconstitui o equilíbrio psíquico total. – Mais uma vez o
equilíbrio, aqui exposto por quem, nada menos que Jung.
O ESTADO E A DOENÇA
– O Estado é um poder que
causa doenças à sociedade, tanto ao indivíduo como ao coletivo. O Estado como
poder político de uma nação é o maior causador de câncer no ser humano.
Contrariando muitos,
Bangse falou:
– Aquilo que antecede as
causas da maioria das doenças nos seres humanos é ocasionado devido ao poder do
Estado. As doenças cardíacas, a obesidade, cânceres, etc. são causados devido
ao poder que o Estado exerce sobre o homem. O que precede a doença é a
preocupação, o nervosismo, o cansaço, a depressão, o stress, etc. E o
que causa aquilo que antecede a doença são as leis, os impostos e o modo de
vida que a cultura do “Poder do Estado” reforça no emaranhado de relações do
ser humano. Assim, ao mesmo tempo em que surgem os remédios, aparecem mais
doenças.
Bangse acredita que o
ideal para o ser humano é adquirir conhecimento para operar o devir com
equilíbrio e sabedoria.
– É difícil lidar com
tantos problemas que o Estado nos proporciona tanto particulares quanto públicos.
– Bangse se voltou para o público. – Quando o Estado toma para si as causas da
população, um “semi-caos” se autoestabelece. Como “pequenas máfias”, há uma
luta de poder interno, corrupção, o beneficiar-se a si próprio, interesses em
favor de outros, excluindo assim os necessitados. O Estado tem o poder de
excluir. Assim, acredito que o Estado se apodera do maior e mais apurado
instinto do homem, o “sentimento emocional”§.
Um exemplo atual: Em 2006,
Lula anunciou medidas para os catadores de papelão (homens que andam puxando
papelão em enormes carroças). Nesse mesmo ano, anunciou um decreto que institui
a separação de resíduos recicláveis nos órgãos e entidades da administração
pública, e sua destinação para associações e cooperativas de catadores com o
objetivo social de acabar com a fome e a miséria. Iniciou-se, aí, a máfia dos
catadores de papelão.
“Lula foi chamado de "companheiro" pelo presidente da
Associação de Catadores de Papel, Papelão e Material Reciclável (Asmare), Luiz
Henrique da Silva, que declarou nunca ter visto nenhum governo fazer tanto pela
sua categoria quanto o atual. "Estou quebrando o protocolo ao chamar o
Presidente de companheiro, mas é esse o sentimento que a gente tem com ele, que
tanto fez por nós.", disse Luiz Henrique. "Agora vou deixar o homem
trabalhar", acrescentou, ecoando o refrão da campanha do
presidente-candidato”. §
Bangse, durante algumas
conversas com mendigos que antes viviam de catar papelão, descobriu que seus
carrinhos foram queimados por fiscais, aquilo que eles usavam para ganhar seu
dinheiro, para sua sobrevivência, pois alguns catadores sustentavam suas
famílias com a venda de papelão. O efeito foi contrário: Em janeiro de 2008,
durante uma missa na Catedral da Sé, aniversário da cidade de São Paulo, um
mendigo esfaqueou duas pessoas durante a comemoração. O mendigo disse que São
Paulo acabou com ele.
– Pergunto: por quê? Às vezes, durante a noite,
eu me coloco no lugar daqueles mendigos, ex-catadores de papelão; imagino minha
carroça, aquela de que retiro meu sustento, queimada. Em seguida, depois de
alguns meses juntando dinheiro de papelão que supostamente carregaria nas
costas, compro as rodas e aos poucos outros apetrechos. Monto, com muito
sacrifício, outra carroça, a qual supostamente seria destruída mais uma vez. Não
deve ser nada fácil! Haverá um dia em que não viveremos mais sob o poder do
Estado.
Bangse pôs-se a refletir no
futuro:
– Sei que demorarão alguns
séculos, ou milênios. Os homens caminharão para um mundo sem fronteiras. Para
um mundo menos desigual, em que o respeito mútuo ordenará uma forma de vida com
menos corrupção, maior distribuição de renda, menos miséria, um anarquismo que
ofereça uma liberdade coletiva e individual tanto das empresas quanto dos
trabalhadores. Daí, quem sabe, as doenças poderão ser erradicadas.
Isso porque Bangse
acredita que a causa principal da doença é a emoção. Um sentimento intenso
tanto eleva o sujeito para o domínio do outro quanto para a submissão, causando
doença ao dominador e aos submissos. Quando controlamos nossa emoção estamos
sujeitos ao equilíbrio. Disciplinar as emoções às quais a alma é submetida no
cotidiano, segundo ele, alinha um equilíbrio padrão no interior das relações
humanas.
– Controlando a emoção,
evita-se que toxinas bioquímicas se infiltrem em nosso corpo através de nosso
inconsciente.
Bangse percebeu que o
equilíbrio emocional diminui a tensão, fazendo com que as enzimas e os fluidos
do corpo humano, em suas reações bioquímicas, funcionem adequadamente como
canalizadores. Assim, metaboliza o organismo, livrando o corpo dos excessos,
eliminando as impurezas e absorvendo o que o corpo necessita.
Aqui surge uma pergunta: Então,
por que ele não se autoequilibrava para eliminar sua síndrome das pernas
inquietas? A resposta aparentemente é simples: isso o ajudava a perder o sono e
a continuar suas reflexões durante a noite.
A EDUCAÇÃO
Bangse demorou muitos anos
para elaborar seus estudos sobre a educação, que se realizaram em escolas
públicas da periferia de São Paulo e da Grande São Paulo. Foram anos de estudos
com muita leitura e um extenso trabalho de campo, aqui sinteticamente descrito.
Ele conta:
–
Certo dia, em 2005, eu li numa revista§a entrevista de ninguém nada menos
que, em minha opinião, o maior líder do MST (Movimento dos Sem Terra) do Brasil,
o Sr. João Pedro Stedile. Ele disse que o hip-hop é um movimento
que está se ampliando e massificando: “é um movimento que, com base cultural,
aglutina os jovens pobres, negros e mulatos das periferias com idéia na cabeça.
Essa garotada não é estúpida” (p.31). E mais: “o povo brasileiro está apático,
mas não haverá muita demora para o despertar das massas” (p.29). Ele também afirmou
“sem base científica” que “este país não passa mais dois ou três anos sem um
processo de grande mobilização da massa. E essa é a força renovadora” (p.33).
Após
ter lido a entrevista, Bangse foi lecionar numa escola da periferia da Grande
São Paulo.
– Ao chegar à escola, tentei confirmar para mim mesmo se o que Stedile
havia dito estava correto. Comecei a perguntar aos alunos de várias séries do
ensino médio o que era o MST; a maioria devolveu-me a palavra perguntando: “O
que é isso?”. Entre os muitos, apenas dois disseram que era o movimento dos sem-teto
porque já tinham vivenciado invasões em residências vazias. Resolvi então reformular
a pergunta: “Você conhece o Movimento dos Sem Terra?”. Todos me responderam
praticamente a mesma coisa: as pessoas que não têm onde morar. Em seguida,
durante o diálogo, fiz outras perguntas: “Conhece o que eles fazem? Sabe se
eles se reúnem? Para que se reúnem?”. A resposta foi unânime: “Não sei!”.
Nenhum soube responder.
– Assim, cheguei à
seguinte conclusão: Convenci-me de que João Pedro Stedile está errado, porque temos
um povo ignorante. Temos jovens líderes de quadrilhas, narcotraficantes da
dança do hip-hop. Verdadeiras gangues que agridem os roqueiros, espancam
os “fanqueiros” e desprezam as meninas que dançam “axé”. Esta é a verdadeira
imagem do jovem da periferia: jovens construídos na escola, e consequentemente
na sociedade. Jovens que lotam presídios e FEBEMs. Jovens que matam por prazer
quando praticam um assalto; são perversos, possuidores de um corpo em
desenvolvimento e uma alma exterminadora. Matam por pouco, ou matam por nada.
São, na maioria, grandes covardes que agem em bandos e armados contra uma
sociedade desarmada e indefesa. Por outro lado, concordo com Stedile quando diz
que a “Nação apática ainda vai despertar”. Acredito que já despertou, mas de
modo contrário a uma idéia revolucionária, ou de lutas através das
instituições. Podemos observar nos jornais todos os dias uma violenta e
sanguinária luta, daqueles construídos para a marginalidade contra aqueles que
apenas vivem pacificamente. O que me deixa irritado é que calamos, consentimos esses
atos, pacificamente os desprezamos por não conhecermos os agredidos ou porque
somos tão covardes quanto os agressores.
Notemos
que Bangse estava certo, porque três anos se passaram e nada mudou; a Nação
ainda continua apática. Porém, num paradoxo, Stedile está correto, isto porque
a humanidade e a natureza estão se aproximando da beira de um precipício,
podemos sentar e continuar nossa marcha em direção ao abismo, ou agir e
reivindicar o futuro que toda pessoa de bem deseja. Necessitamos urgente de uma
reforma política; precisamos realizar movimentos sociais de combate a
corrupção, de igualdade de direitos, estabelecendo limites aos políticos. Além
disso, convencer as pessoas de bem a sair nas ruas gritando palavras de
benevolência, respeito e amor ao próximo.
Outro trabalho de Bangse
foi após os “ataques, coincidentemente praticados nas vésperas das eleições”,
por um grupo denominado PCC§ (Primeiro Comando da Capital).
– Após o término dos ataques do PCC, com centenas
de pessoas mortas, tanto do PCC, quanto dos policiais, o Brasil se destacou no
cenário internacional, foi recorde nos noticiários de revistas e jornais.
Enquanto isso, nas escolas públicas da periferia alunos sumiam e nunca mais
foram vistos. Alguns professores diziam que a escola estava uma maravilha, o que
não durou muito tempo. Isso porque outros ocuparam o lugar daqueles que se
foram. Vivemos num tempo em que a cultura da “violência” se manifesta através
da banalização da mesma.
Bangse
acredita que a corrupção e a variedade de crimes expostos diariamente pela
mídia geram a cultura da violência, atingindo diretamente a formação da
personalidade, principalmente das crianças da periferia e das menos assistidas
pelos pais ou responsáveis.
–
A banalização das estruturas e particularidades de nossa política, a corrupção,
os “mensalões” §, etc., que imundam e enojam a maioria
da população, a todo instante na mídia, auxiliam na construção do jovem, do
aluno. Em outras palavras, supõe-se que para ele a democracia, o direito de ser
cidadão, é participar das falcatruas e corrupção no universo da política. A
banalização de diversos crimes como roubos, assaltos, sequestros, etc., frequentemente
expostos pelos meios de comunicação, acaba sendo uma “teoria” para as crianças
e uma “prática” para os jovens. Isso nos permite dizer que a criança, ao entrar
na escola, tem todo o conhecimento teórico, e a escola acaba sendo o espaço para
a prática da violência. Nesse espaço, roubam e destroem o patrimônio público,
montam-se as gangues, surgem os heróis, as brigas, agridem professores, física
e emocionalmente. Esses alunos acabam sendo construídos sem poder de crítica a
si e aos outros. O desejo de possuir o que é apresentado na mídia, tanto os
produtos como o modelo de vida a ser seguido, colabora para os altos índices de
criminalidade.
Bangse acredita que o
adulto possui uma ética de vida, uma moral estabelecida; assim, ele tem um
olhar crítico da situação. Quando a mídia transmite um ato de corrupção ou algo
parecido, implicitamente as pessoas aceitam com certa vulgaridade e
frustração. A criança ou adolescente em
construção não estão na maior parte do seu tempo com os adultos, os quais
poderiam ajudar na percepção e no entendimento da situação. Eles vivem seus
mundos, interpretam por si e absorvem as informações dos noticiários.
Bangse
falava com convicção, pois passara mais de vinte anos lecionando em escolas da
periferia.
– A educação dita “democrática”, da “pedagogia
do amor”, injetada como uma grande seringa nas estruturas subjetivas da
consciência do aluno, contém: “Aqui posso fazer o que bem entender”. Trata-se
de uma “liberdade” interpretada como gozo de direito livre, direito de fazer
sem se importar com o outro ou o patrimônio público. Esse aluno, construído com
tal subjetividade, composto nesse aprendizado, adquire nas entranhas de sua
alma esse modo de ser que é determinante na formação de sua consciência; isso
passa a fazer parte de sua estrutura subjetiva. Essa passa a ser a forma como a
criança ou o adolescente em idade escolar percebe o mundo e com ele se
relaciona. Assim, é constituída a subjetividade do educando; através da
exterioridade alcança índices de violência em nome da “liberdade”, do direito
de “tudo pode”.
Bangse entrou mais uma vez na podridão da
política.
– É na escola que aparecem as frases e
discussões do “quanto é bom ser político”, “eu quero ser político”, “eu quero a
minha parte”, “se fosse eu com todo esse dinheiro”, etc. A ideia de cidadão
contribui para a questão de “eu também tenho esse direito”. Daí supõe-se que
para o aluno a democracia, o direito de ser cidadão, significa participar das
falcatruas. E a escola da periferia tem o poder de construir um cidadão que a
grande maioria das mães não quer. Assim, o princípio constitucional, de escola
e educação para todos, ao contrário de educar, atinge diretamente o aluno da
periferia deseducando-o, porque ele possui a menor estrutura familiar e a maior
estrutura para atingir a marginalidade.
Bangse pensou no espaço
escolar, é importante lembrar que se trata de escola localizada na periferia.
– Tem portões fechados com grandes cadeados,
separando tudo do aluno. Os cadeados são abertos conforme a necessidade e a
ocasião; em seguida, tudo é fechado novamente. As portas da biblioteca são
fechadas; a porta do pátio fechada, somente abrindo na hora do intervalo; o portão
da quadra abre e fecha entre uma aula e outra. A maioria das escolas é
contemplada por várias salas, banheiros masculino e feminino, um grande pátio e
a quadra de esportes. Há salas que compõem a secretaria da unidade escolar: a
sala do diretor, do vice-diretor e dos professores. Há também, de
aproximadamente cinco anos para cá, unidades escolares com sala de computadores
(os que não foram roubados estão quebrados) e biblioteca (sem bibliotecária). Desse
modo, os alunos, ao chegarem à escola, deparam com imensa muralha com um grande
portão, trancado com um ou mais cadeados. Ali, aguardam o sinal. Ao entrarem,
passam por um portão entre a rua e a escola; em seguida, passam por outro
portão, situado entre a entrada e as salas. Durante o período escolar, os alunos
entram e saem da sala de aula, com ou sem autorização do professor; caminham
nos corredores perturbando outros alunos em outras salas. Eis que chega a aula
de Educação Física (alguns alunos sempre invadem a aula de Educação Física) e
mais um portão para abrir. Pode-se comparar o prédio da escola com um prédio de
presídio, fechado, todo trancafiado; pessoas trancadas entre compartimentos.
Tudo no prédio da escola lembra um presídio. Além disso, no presídio há as
normas e regras internas impostas pelos presos, e na escola normas e regras
parecidas, trazidas pelas LAs (Liberdade Assistida). O espaço escolar acaba
funcionando como um mero conjunto de regras relativas à faculdade de falar e de
expressar muito mal, em nível da marginalidade, tanto quando se trata dos
excluídos como dos criminosos (isso porque nem sempre um excluído é um
criminoso).
– Portanto, a escola
pública localizada na periferia é apenas um espaço de ação para a prática da
violência. Espaço de valores, jogos de poder, ídolos, depredação, formação de
gangues, formação de quadrilhas, humilhações de alunos e professores. Espaço do
desrespeito a si e aos outros. Por que tanta violência praticada pelos jovens e
a má compreensão de tal violência por parte das autoridades educacionais? Na
medida em que faltam análises para a compreensão das atuais brutalidades, podemos
dizer que a banalização da violência é, sem dúvida, a principal.
– Dessa forma, existe ou não
um espaço de aprendizagem das disciplinas, da cidadania, da ética e da moral na
escola pública com uma adequada estrutura didática e metodológica? Essa questão
coloca em xeque os objetivos educacionais, a metodologia, a avaliação e a
própria LDB (Lei de Diretrizes e Bases). Durante muito tempo, a inadequação
estrutural, didática e metodológica do ensino público sugeriu cinco ou três
avaliações, “A”, “B“, “C”, “D”, “E”, ou, pior, “PS”, “S” e “NS”. Isso permitiu
uma aproximação elevada entre o aluno que pouco produz e aquele que é
significativamente melhor ou pior, desestimulando o mais esforçado. Daí surgem
questões como: o desestímulo atinge a autoestima do educando? A baixa-estima
eleva o grau de violência? Em sendo possível tal associação, como ocorre esse
processo? Teriam os órgãos competentes alguma responsabilidade perante essa
situação? Para compreender todas essas questões, é necessário estar ali durante
alguns anos, pensando, repensando sobre a ética, a moral, as normas e as responsabilidades
ali construídas; vivendo a miséria educacional, a comunidade, a periferia, a violência;
e em outro segmento, é preciso conhecer os desejos dos alunos, sua vida, seus
heróis, sua felicidade. A “violência”, nítida e cruel, traz a publico sua
relação culturalmente construída no meio social. Seu crescimento nítido e
certo, que parecia ser resolvido com as diversas FEBEMs, agora, nem pedindo
socorro à maior idade penal não inibiríamos esses jovens e adolescentes que
passam quase um quarto do seu tempo no espaço escolar. Contudo, a progressão da
violência não se restringe à questão da distribuição de renda, da desigualdade
social, atinge parcialmente também, vez ou outra, a classe de maior poder
aquisitivo. Assim, prova-se mais uma vez que o culpado é a “banalização da
violência”.
Bangse acredita que a
escola deixa de ser soberana em seu papel na formação para a democracia. Isso,
para ele, não significa dizer que a escola deveria formar cidadãos passivos e
tranquilos, submissos a um sistema de governo, uma coletividade de súditos e
dóceis. Para ele, a educação situa-se potencialmente na construção cognitiva da
criança e do adolescente, conservando valores e normas de respeito ao outro e
exigindo o respeito tanto para si, quanto para os órgãos públicos e privados.
– Sei que a escola se situa
na intersecção entre o tipo de sistema governamental e o sujeito que se deseja
construir. E na república a escola se fundamenta numa educação republicana. Desse
modo, também sei que não há divisão de renda sem um regime que não seja
igualitário. E não há participação popular num governo que se utiliza do
paternalismo para apropriar-se definitivamente do poder, não permitindo a
alternância entre governantes e governados. Assim, o espaço escolar não é
utilizado para a formação intelectual, para capacitar o aluno na escolha de um
futuro melhor. O espaço escolar é um mero reprodutor de informações que
reforçam as desigualdades, um espaço que promove as injustiças e a
criminalidade. A escola não educa ninguém, apenas se ensina aquilo que os
alunos não querem aprender e se aprende aquilo que o professor não deseja
ensinar. A escola, que antigamente tinha o papel de educar para o trabalho e
para o social, hoje tem o papel de formar futuros marginais. Como num presídio,
a escola prepara o sujeito para a marginalidade. O presídio aperfeiçoa e
aprimora a marginalidade, a escola prepara o caráter marginal; nela se inicia o
feitio delinquente. Talvez, aquele que não tem acesso ao ensino, à informação
(contrariando a muitos) seja possuidor de valores, de ética e moral mais
humana; seja possuidor de um coração que ama, que transcende as limitações do
espaço escolar e recebe as bênçãos de sua cultura, prevalecendo a dignidade do
ser humano como valor absoluto. Este podemos dizer que é um homem equilibrado.
A seguir, Bangse relatou
ter conhecido pessoas sem estudos, porém equilibradas.
– Conheci uma vila de
pescadores em Ubatuba, Estado de São Paulo, cujo acesso era de barco ou uma
longa caminhada num sobe e desce de morros. Ali, conversando com alguns deles,
percebi o quanto são educados e tratam bem as pessoas. Não tinham estudos,
porém não estavam contaminados pela escola. A vida ali não era fácil: havia
dificuldade em ir à venda mais próxima para comprar alimentos, imaginem
precisar de um médico! Porém, aquele isolamento não era tedioso, eles pescavam
pela manhã e à tarde entregavam os peixes a uma cooperativa. No final da tarde
conversavam com os turistas; por vezes, os levavam até as praias vizinhas. Fora
da temporada, diziam que gostavam de jogar baralho e conversar com os amigos. Para
as pessoas daquele vilarejo o importante era ensinar os filhos a pescar.
– Poderíamos pensar: que
monotonia! Para os que vivem nas cidades grandes, morar numa cidade pequena é
um tédio. Para os que moram numa cidade pequena, viver num vilarejo a vida indígena é uma monotonia.
Entretanto, no modo de ser da vida indígena, a “monotonia” deve ser vista como
algo relativo, até porque nas grandes metrópoles há um modo de ser que para uns
é estressante enquanto para outros é monótono. Uma mesma função pode ser
estressante ou monótona. Uma dona de casa pode achar seu trabalho estressante,
enquanto para outra é monótono. Aqueles que vivem de avião para cima e para
baixo podem achar monótona a vida dos que pegam ônibus para ir de um lado para o
outro. Da mesma forma, os que pegam o ônibus para ir de um lado para o outro
podem achar rotineira a vida dos jardineiros ou daqueles que trabalham de gari.
Portanto, a monotonia nada mais é que um conceito particular que singulariza a
realidade do sujeito. Assim, é praticamente impossível avaliar o que é “uma
vida monótona”. Mas há uma certeza: vivam suas monotonias e tentem manter o
equilíbrio!
Bangse se preocupava com a
situação dos professores.
– Na antiga escola tradicional,
o professor representava a autoridade. O professor era aquele “que sabe” sobre
“aqueles que estão ali para aprender”. Na escola atual, ele representa “aquele
que tenta ensinar” e os alunos “aqueles que não querem aprender” (o conteúdo
das disciplinas). É comum o desrespeito com os professores e funcionários da
escola. O professor sofre agressões psicológicas e físicas diariamente no
ambiente escolar e nada pode fazer; não tem a quem pedir ajuda. Quando ele fica
doente, resta-lhe o Hospital do Servidor Público. Ao aluno, tudo lhe é
permitido: “respeitem os direitos humanos”, “respeitem o Estatuto da criança e
do adolescente” e “respeitem a Lei de Diretrizes e Bases”. O que é permitido ao
professor? São-lhe permitidos hábitos de tolerância, subordinação, diante dos
alunos e dirigentes. Recebe um baixo salário e vive horas de desconforto e
náuseas. Ninguém está ali porque gosta! Pelo menos depois das primeiras
semanas; alguns podem demorar um pouco mais.
Bangse expôs o
funcionamento do sistema educacional da seguinte forma:
– É deprimente o processo
de aniquilação quando se trata da formação da alma humana nas escolas públicas
da periferia. Ali, preparamos o aluno para o fracasso anímico irreversível. As
horas que o aluno passa na escola, os anos que seriam de “estudos” acabam sendo
usados durante o processo de transição, como declínio do pensamento, isto é, em
vez de “educação” e aprendizagem de conteúdos, o coletivo realça a avidez, o orgulho, a discórdia,
contrapondo ao que se pode chamar de Educação. O descaso das autoridades, o
forte apelo ao consumo num país capitalista transformam essas crianças e jovens
em formação num “anticidadão”, um indivíduo que não respeita ninguém, sem amor
ao próximo ou à própria vida, que não tem vínculo político-social com seus
iguais nem convivência com os bons. Para ele, não importa saber ler e escrever.
A grande maioria até acaba lendo e escrevendo, por terem passado quatro anos no
Ensino Básico, quatro no Ensino Fundamental e mais três no Ensino Médio.
Somando tudo, são exatamente onze anos para aprender a escrever o nome e ter
uma leitura básica sem interpretação de um simples texto. Poder-se-ia
perguntar: Qual o êxito da escola? Qual o êxito do aluno? Se a escola tem êxito,
por que os alunos, em sua maioria, não aprendem o básico (ler, escrever, fazer
cálculos simples e interpretar textos simples)? Se o aluno tem êxito, por que a
violência exacerbada contra o patrimônio público, contra o professor, contra os
colegas de sala ou da escola?
– Em depoimento eu lhes
digo que lecionei numa escola pública onde todos os vasos dos sanitários foram
quebrados; computadores, TVs e vídeos roubados. Estamos passando por uma fase
de absoluta falência e miséria da escola pública. O desprezo pelo sentimento de
igualdade e pela compaixão provocou uma inibição no processo de formação do
educando. Inibe o que faria bem à alma e consagra aquilo que faz mal à alma.
Bangse, como já notaram,
gosta muito das referências de Nietzsche mesmo quando o contraria. O filósofo afirma:
“Sua
vontade de vida tinha que ser exacerbada até se tornar absoluta vontade de
poder – acreditamos que dureza, violência, escravidão, perigo nas ruas e no
coração, ocultamento, estoicismo, arte na tentação e diabolismo de toda a
espécie. Tudo que há de mau, terrível, tirânico, tudo que há de animal de
rapina e de serpente no homem serve tão bem à elevação da espécie ‘homem’ quanto
ao seu contrário – mas ainda não dissemos o bastante, ao dizer que apenas isso,
e de todo nos achamos, com nossa fala e nosso silêncio neste ponto, na outra
extremidade (p. 48) §”.
– Nietzsche diz isso,
referindo-se aos rapazes bonzinhos e desajeitados, porém isso mais se parece
com os nossos alunos. Alunos construídos para serem criminosos, que não têm
nada de bonzinhos. Daí, a necessidade de manifestar-me a favor da religião.
Sabemos do interesse que as religiões possuem na posse do dinheiro, poder, em
participar na maioria das vezes nas decisões do Estado, quando apóiam ou
indicam seus candidatos a vereador, deputado, prefeito, etc. Por um lado, as
religiões são assim, simplesmente porque o Estado assim quer. Por outro, elas
permitem a alguns a agirem em normalidade nas relações existentes com o Estado.
As religiões acabam sendo um mal necessário para a ordem e o equilíbrio entre
as pessoas, porque o Estado não cumpre o seu papel.
Bangse defronta-se com
Nietzsche, contrariando-o mais uma vez:
– Persisto em me opor a
Nietzsche. Pois sigam suas religiões, criem novas religiões, ou não! Mas ocupem
seus tempos de maneira que o mal não exista para o próximo. Não pretendo com
meus dizeres propagar a religião. Porém, se o individuo religioso praticar o
bem para si e para o outro, independente de Deus existir ou não, será um ato de
superioridade. Se o indivíduo for uma pessoa culta de bem com a vida e consigo
mesmo, talvez não necessite de religião para fazer o bem. Porém aqueles que
formamos em nossas escolas públicas das periferias, somente uma relação com o
divino poderá deixá-los mais tolerantes, com uma ética em que o fundamental é o
respeito pelo outro, com sentimentos de igualdade e de compaixão. Não interessa
aqui discutir a existência ou não de Deus, e sim dizer a importância de um Deus
na vida dos alunos, a importância de acreditarem em algo para não caírem no
vazio. Podemos fazer como Cristo: “Amai-vos uns aos outros como a ti mesmo” e /ou
como Foucault: “Tenha cuidado de si e do outro”. Com isso, discordamos mais uma
vez de Nietzsche quando diz:
“Amar
o homem por amor a Deus – este foi, até o momento, o mais nobre e mais remoto
sentimento alcançado entre os homens. Que o amor ao próximo, sem uma oculta
intenção santificadora, é uma estupidez e animalidade mais que esse pendor a
amar os homens tem que receber de um mais elevado pendor a sua medida, sua
finura, seu grão de sal e partícula de âmbar – qualquer que tenha sido o homem
que primeiro sentiu e ‘viveu’ isso, e por mais língua tenha gaguejado, ao
tentar exprimir uma delicadeza assim, ele nos será para sempre sagrado e
venerável como aquele que até hoje voou mais alto e se extraviou do modo mais
belo!” §(pp. 62, 63).
– Nietzsche, ao mesmo
tempo em que usa o sadismo em suas palavras, também afirma o quão é belo e mais
distante o “amar o homem por amor a Deus”. Belo no sentido de exprimir um
desvio e ter sido o primeiro a viver isso, e distante, longínquo, até fóssil,
no sentido de impossível, de falta de discernimento, assombroso e cruel a um
modo de perceber por meio de qualquer um dos sentidos: o amor a Deus. Ele
realmente não acredita que o homem possa ser bom, no sentido de amável, educado
e generoso.
Para Bangse, um dia o
homem será bom e generoso, e não haverá necessidade do poder do Estado.
– Isso não quer dizer que
teremos o paraíso; longe disso, mas uma sociedade mais igual, sem tanta
disparidade cultural e financeira. Acredito que a religião une os menos
favorecidos, porque ali há homens de boa vontade. Não que ela seja inocente,
até porque a religião, de certa forma, aproveita de seu poder para fins políticos,
a História demonstra isso. Por outro lado, a falta de religião é visivelmente
observada em qualquer escola da periferia. O ódio, a falta de educação, o
desrespeito ao próximo e ao bem público demonstram o horror da falta de
religiosidade quando matam e agridem professores, funcionários e/ou a eles
mesmos. Assim, o homem de “boa vontade”, descrito por Nietzsche, não é
necessariamente parte de um rebanho doentio e medíocre. Esse homem está mais
para um modo de ser pacífico, do contrário, estaríamos concordando com Platão: “ninguém quer fazer
mal a si mesmo; por isso, tudo que é ruim acontece involuntariamente. Pois o
homem ruim é ruim apenas por erro; se alguém o livra do erro, torna-se
necessariamente bom” (90). Nietzsche acredita que essa seja a maneira de
relacionar que cheira à plebe: “no agir mal apenas se vêem as consequências
penosas, e verdadeiramente é estúpido agir mal”, enquanto admite sem problemas
a identidade de “bom” com “útil e agradável” (90). Eu lhes pergunto que mal há
em ser útil e agradável? Seja bom! Pratique o bem! Respeite o que é público e o
que é privado! É o mínimo que podemos fazer. Não estamos entrando no mérito de
praticar a caridade, ser um santo, etc.; apenas devemos ter um comportamento
aceitável durante nossas relações, seja com o outro seja com a natureza.
OS
CONTRASTES SOCIAIS E A PAZ
– O país paternalista faz
com que as crianças e os jovens esperem tudo do governo e, quando não
conseguem, tomam daqueles que estão à sua frente, seja público, seja privado,
seja individual, seja coletivo. A violência exacerbada é uma “doença social”
discutida amplamente, no entanto sem cura em curto prazo. Nossos políticos
omitem-se, trabalham para si, preferem usar do assistencialismo e do
paternalismo para se elegerem na próxima eleição.
– A globalização (a atual que
visa ao lucro e não ao social, ao armamento e não à paz, que demagogicamente se
preocupa com as causas reais da preservação da natureza) e a industrialização
estimulam apenas o desenvolvimento dos centros urbanos, aglomerando a população,
oferecendo condições ideais e legítimas de submissão aos políticos; da troca de
um vale leite ou uma bolsa família pelo voto. Assim, crescem os centros urbanos
em que a barganha dos votos está presente pela necessidade popular; centros
urbanos onde o “showmício” apresenta as estrelas das duplas sertanejas ou grupos
de pagode declarando seu voto frente ao contratante. Isso implica uma revisão
urgente no processo das eleições políticas, totalmente antidemocráticas,
existentes em nosso país. Antidemocráticas porque só os que têm dinheiro ganham
a eleição; aqueles que não têm e ganham a eleição entraram devendo favores para
os que têm.
– Eu, Bangse, afirmo que o
paternalismo e todo sistema “parafernálico” do processo de eleição (tudo que
foi dito acima mais a compra de votos, de grêmios, associações, sindicatos,
etc.), integrados em todos os cantos da nação brasileira, constituem um dos
mais fortes pontos de sufocação social e são retrógrados quando se trata do desenvolvimento
do país e de sua democratização. O Estado tem a incumbência de tornar a
convivência harmônica, com proporções regulares entre os envolvidos. O Estado,
que teoricamente possui a missão de oferecer pacificação e ordem, acaba
ocasionando uma desordem social, manchada de sangue das vítimas indefesas. Isso me faz discordar de Arendt§
quando diz: “a política é o oposto à guerra”. A política permitida pelo Estado traz
apenas desigualdade, em que a criminalidade se iguala à política e consequentemente
à guerra, visto que o conceito de guerra é confronto armado, perseguição
sanguinária, lutas, hostilidades, etc. e isso é exatamente o que presenciamos
hoje no Brasil. Assim, podemos notar que o Estado na qualidade de instituição não
tem a posse exclusiva do recurso da violência. A violência é dividida entre o Estado
e seus iguais. – Bangse refere-se à violência como toda e qualquer forma
ilícita praticada no Estado, tanto pelos políticos quanto pelos criminosos
comuns.
– Desse modo, há
obrigações a serem obedecidas no Estado apenas pelos cidadãos de bem; estes,
sim, estão sujeitos às penalidades. Estes, sim, respeitam as condutas e devem
obediência compulsória ao Estado. O Estado! Soberano! Aquele que possui um
poder acima dos cidadãos que nele convivem. O cidadão, que em seu conjunto é denominado
povo. O povo, construído para ser inerte e apático perante seus governantes. – Notemos
nas palavras de Bangse que o Estado constrói seus cidadãos para obedecerem às
suas ordens, e também marginais para aniquilarem os cidadãos. –Isso me permite
dizer que não somos nem pertencemos a uma Nação brasileira, até porque a
palavra “Nação”, muito mais do que a ideia de costumes, língua, religião, etc.,
sugere uma igualdade, a qual podemos chamar daqueles que vivem em determinado
Estado de “cidadãos”. Portanto, temos duas nações: a nação dos cidadãos de bem
e a nação dos criminosos (do colarinho branco ao batedor de carteira).
– Não ignoramos a ideia de
assimetria em uma nação, porém a função política do Estado (o único que tem o
poder de exercer sua soberania em mais de uma nação) é minimizar no âmbito dos recursos públicos e
dos bens sociais em todos os seus níveis (educação, saúde, moradia, emprego,
etc.), os contrastes entre ricos e pobres, oportunizando direitos. Em vista
disso, o Estado perde sua função de apaziguar as desigualdades, e aqueles que
“têm” diferenças que procurem seus direitos na igualdade consagrada nas leis. –
Segundo Bangse, aquele que detém o poder econômico possui maior probabilidade
de força política. – Daí, a necessidade dos direitos civis, políticos e sociais
na diminuição da criminalidade. Para isso, cabe ao dito “povo” ignorar a
assimetria e buscar a simetria saindo nas ruas para reivindicar soluções
urgentes.
– O povo, mesmo sem poder
econômico, pode mudar uma nação, desde que para isso seja educado para a
leitura e o discernimento. Por outro lado, aquele que tem o poder econômico,
seja individual, seja uma classe ou grupo social, influencia diretamente nas
determinações que vêm do Estado. Assim, ele é um anfiteatro, uma arena de
batalha onde o combate ocorre entre as duas nações (a nação dos cidadãos de bem
e a nação dos criminosos). Não quero que interpretem os ricos como nação dos
criminosos, até porque, em sua maioria, licitamente conquistaram ou herdaram
tal riqueza. Da mesma forma que há pessoas criminosas de uma classe social menos
favorecida, há ricos criminosos pertencentes a uma elite e vice-versa. A elite,
aqueles que têm a posse e a riqueza também não estão livres de ser atingidos
pela violência, seja como membro integrante, seja como presa inocente.
Mais uma vez, Bangse contraria
Nietzsche, que diz ter a elite “a hipocrisia
moral dos que mandam”.
Para Bangse:
– Façam suas morais! Vivam
suas éticas! Tenham suas riquezas! Porém, reflitam sobre os que fazem as leis,
seus políticos, sua industrialização, o marketing empresarial, a mídia,
a devastação da natureza, etc. Não sejamos inocentes quanto a essa elite que se
impõe e utiliza o Estado para servi-la em alguns interesses. Porém, não é o
empreendedor o maior culpado da violência exacerbada em nosso país.
Para Nietzsche,
construímos “certos impulsos fortes e perigosos, como o espírito empreendedor,
a temeridade, a sede de vingança, a astúcia, o extermínio da humanidade”.§(98).
Para Bangse, esses impulsos devem ser conhecidos em sua filosofia pelo homem
para que saiba dosar o uso deles.
– O impulso empreendedor,
como tantos outros, é necessário para nossa sobrevivência. O conhecimento desse
impulso pelo homem poderá trazer mais paz à humanidade.
Para Nietzsche, em
circunstâncias de paz o homem guerreiro se lança contra si mesmo. Para Bangse,
o Estado constrói os guerreiros e os pacíficos.
– A paz não exige o homem
guerreiro, mas o homem guerreiro poderá viver em paz. A paz a que me refiro não
é a paz provocada por uma guerra, é simplesmente a paz construída na alma.
Para Nietzsche, a
compaixão para com todos é uma tirania com você. Para Bangse, a falta dela faz-nos
pensar na construção de seres diabólicos, seja na esfera da alma coletiva seja
na intrapsíquica.
– A paz construída na alma
aponta para a formação de sujeitos compositores de um estilo de vida pacífico.
Não seres cordeiros, e sim seres pacíficos. Os impulsos compreendidos durante o
processo de construção do ser pacífico necessitam de seres pacíficos com tais
compreensões, isto é, os políticos honestos e os intelectuais precisam
conscientizar-se da sua importância nesse cenário. É, nesse sentido, que esses
homens devem abrir os olhos e agir de forma correta. O político tem que ser
menos corrupto e menos perverso, e os intelectuais precisam elaborar métodos,
processos, projetos que enfatizem o conhecimento daquilo que é bom e daquilo
que é ruim.
– Não pretendo anunciar
uma ética de vida ou uma moral aliciadora da alma. Não queremos formar uma alma
apática, inibida. E, sim, a partir do exemplo que temos hoje, violência atrás
de violência, fazer dos impulsos a que Nietzsche se refere a pessoa mais humana
possível. Isso não é fácil! Em nossa sociedade, há múltiplas conveniências,
múltiplos jogos em que a vitória se alicerça no mais poderoso. Tanto a
destruição (alma criminosa) quanto a construção (alma pacifica) são dois
opostos, porém paralelos: um corre por cima, outro por baixo, e ou vice-versa. Assim,
não formamos nem o homem “bom de coração e fraco de vontade”, a que Nietzsche
se refere, nem tampouco o super-homem, o “homem objetivo”. Formamos, sim, um
homem fragmentado, que ocupa a casca da sociedade, um homem sem vínculo,
desprovido do bem, uma criatura que apavora, que obtém uma má consciência,
treinada para matar sem piedade, sem escrúpulos, desprovido de conhecimentos;
um homem que acredita em seus atos como sensação de liberdade.
NOVAMENTE
A ESCOLA
Bangse voltou a falar
sobre a escola.
– A cultura construída na
escola é adquirida no processo de evolução dessas criaturas: é cultivada,
incorporada, transmitida de tal modo que matam aquilo que chamamos de virtude, de
ética e passam a ter um estilo de vida em que “só o crime compensa”. Adquirida
e compreendida como um processo de construção, suas formas históricas se
concretizam na interação das banalidades, dos diversos tipos de crimes, dos vários
heróis criminosos, dos diversos políticos ladrões. Aqui cabe muito bem a força nietzchiana:
“A
força que tem o espírito, de apropriar-se do que lhe é estranho, manifesta-se
num forte pendor a assimilar o novo ao antigo, a simplificar o complexo, a
rejeitar ou ignorar o inteiramente contraditório: do mesmo modo ele
arbitrariamente sublinha, destaca e agencia para si determinados traços e
linhas do que lhe é estranho, de cada ‘fragmento do mundo exterior’. Assim
fazendo, sua intenção é incorporar novas ‘experiências’, enquadrar novas coisas
em velhas divisões – é o crescimento, portanto; mais exatamente, a sensação de
crescimento, a sensação de força aumentada. A serviço dessa mesma vontade se
acha também um impulso aparentemente oposto do espírito, uma brusca decisão de
não saber, de encerrar-se voluntariamente, um fechamento das janelas, um dizer
não interiormente a essa ou àquela coisa, um não-deixar que algo se aproxime,
um estado defensivo de tornar muita coisa conhecível, uma satisfação com o
obscuro, com o horizonte que se fecha, um acolhimento e aprovação da
insciência: tudo isso necessário, conforme o grau de sua força apropriada, de
sua ‘força digestiva’ voando uma imagem e realmente o ‘espírito’ se assemelha
mais a um estômago” §(137).
– Esse homem “transubjetivo”,
que hoje construímos, tem um caráter próprio, comprometido em manter a violência.
O Estado, por sua vez, tem o poder de perpetuar e manter esse espécime de
homem. Nossa inexperiência democrática é antes de tudo antidemocrática, quando
permite e dá esse poder ao Estado. Assim, o Estado perde seu bem mais precioso,
o cidadão. O prejuízo para a nação, ao não reconhecer esse problema, tira-nos a
oportunidade de termos cientistas, pensadores, políticos e outros profissionais
necessários para mantermos a ordem, num regime em que haja o Estado e a
democracia. Portanto, estamos à mercê de uma tirania governamental, numa
sociedade em que homens destroem almas, destroem vidas, destroem um modo de ser
pacifico. Destroem o futuro para aqueles que poderiam ter um, mas infelizmente
morrem como culpados de serem como são; morrem como culpados do narcotráfico,
dos assaltos, dos contrabandos, enfim das ilegalidades.
– Cada vez pensamos menos,
cada vez ensinamos menos, cada vez escreve-se menos; as escolas ensinam
conteúdos mais singulares, menos complexos, mais superficiais. Em vez de
ensinar o educando a ser cidadão (já que o Estado assim deseja), livre, o
professor ensina o aluno a não ser, a não participar; e seu final é a morte ou
um sistema carcerário. O espaço público desencoraja o aluno; estamos educando
na contramão do saber, estamos atestando a burrice, a mediocridade; tudo em
função do montante de projetos sem objetivos concretos para o universo
comunitário escolar. A escola está doente, deixou de ter um lugar ao sol para
se esconder atrás dos direitos humanos, atrás do ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente), atrás das ONG’s (Organizações Não Governamentais). Assim, resta-lhe
apenas a escuridão, o caos, o fracasso e os mal sucedidos projetos retirados do
reino das sombras, isto é, sem qualidade, sem objetivo claro. Tudo isso engole
a escola com enorme perversidade, comprometendo toda a existência de uma
geração futura. Assim, deixa-se a perder de vista todo o futuro de um país
subdesenvolvido, no que diz respeito à educação, à miséria, à violência e à
distribuição de renda, mesmo sendo a oitava economia do mundo.
Bangse não conseguia
deixar a escola de lado, pois foi ali, entre os iguais, menos favorecidos
financeira e intelectualmente, que compreendera toda sua existência. Foi ali
que ele aprendeu a respeitar e amar ao próximo e à diversidade. Na escola, ele absorveu
todo seu conhecimento dos livros, porém nunca conseguiu passar aos alunos. Não
por incompetência! Não por desafeto ou má vontade! Sim, porque ninguém o ouvia,
ninguém lhe dava atenção: nem alunos, nem direção, nem tampouco os governantes.
Para Bangse, os governantes apenas entram na escola pública para votarem e
pedir voto.
– Se os governantes
tivessem o mínimo de compreensão da vida, jamais desejariam ser governantes. Eles
sempre serão oligárquicos, sempre serão o governo de poucos; não importa se são
de direita ou esquerda, sempre governarão para poucos e jamais pensarão em
construir pessoas com capacidade para entender toda essa situação. Os governantes
têm total ignorância dos adultos que estão formando. Por um lado, pouco lhes interessam
os adultos que formam; por outro, desejam construir pessoas fáceis de manipular.
Para eles, apenas alguns poderão substituir os cargos profissionais da próxima
geração, enquanto outros deverão ocupar o mundo do crime. O grande problema é
que eles não estão conseguindo controlar a grande quantidade de crianças e
adolescentes que estão se dirigindo para o mundo do crime. Isso porque os governantes
não sabem que os alunos construídos na escola pública não sabem ouvir, que é o
mínimo necessário para um diálogo e um convívio social (é importante lembrar
que, na sua grande maioria, eles não têm problemas de audição).
Bangse retornou ao aluno:
– Podemos considerar que
não preparamos o aluno para o mercado de trabalho, nem para as necessidades
exigidas no comércio, nem nos órgãos públicos e ou nas instituições privadas
sociais e educacionais. Isso incentiva profundamente o viver a violência, a
ilegalidade, a prostituição. E os que escapam dessa maneira de ser servem a
burguesia. Consideremos também que a sala de aula virou um laboratório das
ciências sociais, um objeto de constantes tentativas e erros numa sucessão de
fracassos. Paralelamente, o aluno, um ser em formação sem formação, faz parte de
vários grupos de estudos e pesquisas sociais (a indústria dos mestrados e
doutorados).
– Esses fatos dirigem meus
pensamentos para Arendt. Ela prioriza a escola como espaço relevante das
manifestações mais elementares da condição humana, as quais, segundo a autora,
estão ao alcance de todo ser humano. Para ela, a atuação educativa faz a
diferença, imbricando singularidade e pluralidade no espaço de probabilidades e
possibilidades de ação. Decerto Arendt tem razão quanto ao espaço de
probabilidades e possibilidades, principalmente porque a probabilidade e
possibilidade de uma criança que estuda numa escola da periferia da capital
(São Paulo e Grande São Paulo) tornar-se um criminoso do mais alto nível é bem
maior que a de se transformar em um cidadão de bem. Considerando o discurso de
Arendt quanto a priorizar a escola, talvez sirva para uma escola particular de
boa qualidade, mas para a nossa, pública e periférica, resta-lhe a construção
de toda uma geração que, embora dirigida para o saber, destrói a si e aos
outros.
– Não desprezamos nem
ignoramos as palavras de Arendt quanto a sermos iguais da infância à velhice.
Para ela, os homens seriam “incapazes de compreender-se entre si e aos seus
ancestrais”. Segundo ela, “se cada ser humano não diferisse de todos os que
existem ou virão a existir, (...) não precisaria do discurso ou da ação para se
fazer entender”, nesse sentido, fazendo de suas palavras as minhas: com simples
sinais ou sons, poderíamos comunicar nossas necessidades imediatas e idênticas.
Interpretemos que, se todo sentir e pensar, falar e se comunicar, toda ação
fosse individual, seria impossível qualquer tipo de comunicação. Com isso,
somente podemos nos comunicar porque temos um sentir, pensar e falar coletivo,
semelhante. E há um paradoxo que podemos considerar uma normalidade: precisa
haver uma singularidade e ao mesmo tempo uma coletividade para que possamos
traduzir o sentir, pensar e falar através de nossa ação. Isso me permite dizer
que existe uma necessidade de sermos coletivamente bons uns com os outros. Há
uma necessidade de sermos iguais quanto ao tratamento e respeito por nós e pelo
outro. Educar, dar bons conselhos, dirigir, enfim guiar o ser humano para uma vida
que argumente o ser igual para ser diferente é uma questão paradoxal que
transcende a pluralidade. É uma questão que singulariza o fazer pessoal do
sentir, pensar e falar, que represente concretamente uma ação igualitária.
Bangse
acha que todos têm o direito de julgar a sociedade, desde que tenham o
entendimento ou a “pura mediocridade” (no sentido de sermos como os pescadores
da vila, que não foram contaminados pela banalidade da violência).
–
Cabe-nos, sim, julgar a sociedade como um todo. Veja-se o modo como queremos
enganar o próximo e levar vantagem em tudo, em detrimento do outro. Se existisse
um respeito mútuo não haveria necessidade do Estado. Surge aqui uma afirmação:
o homem comete discórdias entre iguais desde seu surgimento. Por isso, a
necessidade do poder do Estado e de suas leis para que o homem viva dentro de
normas e regras, e aquele que não as cumprir que pague à sociedade como um
todo.
– Se o homem em seu todo
respeitasse o outro, para que o Estado? O Estado necessita da construção do
homem desonesto e criminoso para sua sobrevivência. Se não houvesse o Estado e
todos vivessem em comum acordo, certamente nos dias de hoje seria uma utopia,
porém daqui a milênios assim será. Existirá o mais pobre e o mais rico, haverá
discussões e desentendimentos, mas não a aniquilação do outro ou de seus bens.
Poderíamos pensar: O comércio e as indústrias não explorariam seus
trabalhadores? Se todos pensassem no bem comum, não! O comércio cobraria um
preço justo para sua sobrevivência e assim repassaria aos seus funcionários, e
as empresas a mesma coisa, porque ter o poder, o dinheiro seriam coisas do
passado, da história dos homens. No passado existiram civilizações de
antropófagos, e não é por causa delas que voltaremos a ser antropófagos. Pensem
no holocausto, nas guerras, há piores modos de vida que esses? O mal que fez a
bomba atômica e continuou deixando seu rastro de sofrimentos aos homens que nem
sabiam o que era a guerra, é terrível, desprezível. Por isso, eu lhes digo: o
Estado é o maior culpado de todas as coisas más que o homem já sofreu e
continua sofrendo. A causa da infelicidade da raça humana é o Estado. Se ele não
existisse, em vez de vivermos o sofrimento e pequenos fleches de felicidade,
viveríamos a felicidade com pequenos fleches de sofrimento.
Bangse se preocupava com a
inclusão.
– É democrático atrasar a
aprendizagem de uns para atender outros com problemas mentais? É importante
destacar que numa sala de aula há somente um professor que não tem
especialização para trabalhar com os vários tipos e níveis de problemas mentais?
É democrático crianças com problemas físicos e mentais serem escachados como
“aleijadinho” ou como “louquinho” pelos outros alunos? É democrático um jovem
recém-libertado da FEBEM, com passagem de roubo e homicídio, estudar com o meu filho,
com o seu filho? É certo que cada caso é um caso; sendo assim, há casos que
merecem e justificam a inclusão. Por um lado, aquele que praticou um crime tem
o direito e dever de estudar; por outro lado, aquele que nunca praticou nenhum
crime tem o direito de não querer estudar com o praticante. O que fazer? Parece-me
que tais inclusões têm mais a intenção de minimizar custos. Enfim, as
afinidades que cercam todos os envolvidos na inclusão sustentam reciprocamente
as relações vividas na escola, despersonalizando o aluno. Isto é, exclui em vez
de incluir, excluindo, às vezes, os já
inclusos quando se trata das relações com as LAs (Liberdade Assistida).
Bangse observou como os
professores avaliam seus alunos no contexto social:
– Comecei a perguntar para
os professores: “O que faz um aluno ser bom ou ruim?” “Qual sua relação com os
alunos?” “Como é o relacionamento entre os alunos?” E cheguei à seguinte
conclusão: O professor vê o aluno como uma criança, independente da idade, sem
futuro; uma criança sem princípios, que não possui atributos nem pré-requisitos
para sentar em uma cadeira e prestar o mínimo de atenção na aula dada. Uma
criança sem educação, que pretende assim continuar, que não quer nem se interessa, com raras exceções, em ser
educado. Para os professores, o aluno vai à escola para comer, para se divertir:
seus divertimentos são brigar, ofender e ou bater em professores, pichar a
escola, quebrar carteiras, roubar o que pode (lápis, dinheiro, etc.). Para ele,
pouco importa aprender os conteúdos ou a ter o mínimo de educação.
– Ao conversar com a
Professora Antônia, 53 anos, ensino fundamental, disciplina geografia, ela me
disse: “Antigamente, a maioria dos alunos sentavam e assistiam às aulas,
brigavam ou depredavam a escola. Era bem mais fácil observar a melhora em sua
sociabilidade. Hoje, praticamente todos são piores que os piores de dez anos
atrás. O pior há dez anos era melhor que o melhor, digo, o mais comportado de
hoje. Procuro sempre dar uma nota melhor para aqueles que pelo menos sentam de
vez em quando, mas é difícil”.
– Outro depoimento que me
chamou a atenção foi o da Professora Zélia, 44 anos, substituta que acabara de
lecionar numa sexta série, cerca de quarenta e oito crianças de 12 a 14 anos:
“Acabei de dar uma aula em que um aluno me levantou a mão para me bater, veja
você! Eles não querem fazer nada, não respeitam ninguém. Acabei de apartar uma
briga de meninas quando descia para a sala dos professores. É incrível, só
leciono porque preciso pagar minhas contas”.
Bangse gostava de ouvir os
desabafos dos colegas.
– A professora Cleide, 46
anos, disse que “alunos que brigavam e bagunçavam muito, muito mesmo, hoje até
que estão razoáveis; em compensação, há outros que pioraram”.
Conversou com uma
professora na porta de sua sala, nos momentos finais da aula. Ela disse: “Quando
um se machucar, levo para a diretoria”.
Bangse anotara várias das
reclamações dos amigos professores durante os anos em que lecionou:
– A Professora Lúcia, de Português,
sofreu ofensas verbais de um aluno. Ele a chamou de todos os palavrões
possíveis e terminou com a seguinte frase: “Eu ganho muito mais que você
fazendo o que faço, e nem preciso de faculdade para isso!”. Afinal, quem nós
estamos formando? E para que estamos formando? A realidade é que a escola
pública da periferia prepara o aluno para o mercado ilegal, das coisas fáceis,
que não exige um comprometimento em acordar cedo, cumprir determinado horário
de trabalho, ou mesmo para o trabalho autônomo.
– A situação do ensino é
essa porque tudo deve ser elogiado: trata-se da famosa pedagogia do amor. Os
alunos não devem ser contrariados, os trabalhos e afazeres escolares mais
medíocres têm que ser valorizados. Esse mundo escolar, onde tudo que faço está
certo ou mais ou menos certo, não exige uma escrita e uma leitura coerente com
as faixas etárias e as séries. Tudo é inclusão, mas, na realidade, nada mais é que
um depósito de lixo humano, onde crianças que acompanho desde a 5ª série, quando
chegam à adolescência, ou estão presas nas FEBEMs ou estão mortas. Aqueles que
sobrevivem são corrompidos pelo mundo ilegal das drogas, dos assaltos, etc. E os
bem-sucedidos, que atingem o topo da pirâmide em conhecimento e alcançam o
diploma, normalmente as do sexo feminino, chegam à caixa de um supermercado ou a
serviços domésticos, nas casas de pessoas pertencentes à classe B ou C.
– Os professores reclamam,
com razão, dos baixos salários, que é mais um dos motivos desestimulantes. Sem
força e sem motivação, sem objetivos, os professores estão praticamente
perdidos, sem esperança. Apenas passam o tempo, esperando ansiosamente a
miserável aposentadoria. Assim, o professor, passivo à situação, com excesso de
tarefas e obrigações em atividades relacionadas ao contexto escolar, cai em
depressão somada à falta de vigor físico e emocional; vai direto para o
hospital do servidor público. Nota-se que o timbre de sua voz cai, o brilho de
seu olhar diminui e sua atenção e memória são afetadas significativamente. Eles
ficam enfraquecidos, cansados e mal humorados. Esse é o verdadeiro contexto escolar,
que destrói professores, crianças e adolescentes, demonstrando a incapacidade
da elite educacional em organizar e elaborar políticas públicas que estabeleçam
a ordem social. Dessa forma, o país, cada vez mais, sobe no ranking das
desgraças, dos desacertos, da fome, da miséria, da corrupção, do índice de
criminalidade. Afinal, conseguiram matar o professor em sala de aula,
convenhamos, ele está realmente morto.
O RESPEITO AO OUTRO
Bangse refletiu como seria
uma civilização sem o Estado.
– Os países, os estados,
os municípios, os bairros e as ruas apenas funcionariam como localização e
referência para os seres humanos. Se todos se “respeitassem” e “respeitassem” o
bem do outro, independente de ser rico ou pobre, talvez não existisse o paupérrimo.
Se todos se “respeitassem” e “respeitassem” o bem do outro, não haveria a
necessidade de um Estado e a imposição de suas leis, tudo seria privado. Não
haveria impostos, arrecadações nem haveria necessidade de multas de qualquer
tipo, até porque todos se respeitariam mutuamente, portanto não haveria desvio
de dinheiro público, corrupção, etc., até porque nada seria público. Tudo seria
privado!
Por exemplo: num caso de
discórdia, ambas as partes contratariam um juiz, e cada um com seu advogado
resolveriam à questão. Sem corrupção, venceria aquele que tivesse e comprovasse
a real razão. Isso porque o juiz seria justo. Existiriam normas e regras para
que se pudesse viver em paz e amigavelmente, mas não haveria a necessidade
soberana de um Estado. No exemplo, o derrotado arcaria com a derrota e
cumprimentaria o vencedor, como faz um atleta ao vencer uma corrida. As leis
não seriam leis, seriam éticas de que todos teriam o conhecimento, o
discernimento, a compreensão e a capacidade de ingerir ou regurgitar seus erros.
– O homem sem Estado seria
capaz de entender quando Jesus Cristo disse: “Perdoai-os, Senhor, eles não
sabem o que fazem!” Cristo sabia que aqueles homens construídos pelo Estado não
tinham discernimento para compreender quem eles eram. Não me refiro aqui à
religião, ou um apego a um Cristo religioso! Refiro-me a um homem pregado numa
cruz, em sofrimento, com um monte de pessoas zombando e rindo de seu
sofrimento. O Estado, eloquente, construiu aquelas pessoas para serem perversas
e agirem daquela forma não apenas naquela situação como em qualquer outra. Sem o Estado, não haveria crucificação, até
porque era a lei da época. Cristo, de certa forma, tinha o conhecimento quando
dizia: “Dê ao homem o que é do homem e a Deus o que é de Deus”, porque ele se
referia ao Homem Estado, ao Homem Poder. Se por um lado Platão§defendia
o Estado, Cristo defendia o homem livre. Platão afirmara-o em seu tratado “A República”
como modo de vida ideal. Porém, antes dele, um sofista, Trasímaco, declarou que
a força é um direito e a justiça é o interesse do mais forte. No Estado são
estabelecidas as leis, cujo interesse determina o que é justo, punindo como
injusto aquele que transgredir suas regras. Platão descreve que Sócrates, ao
dialogar com Gláucon e Adimanto, salienta que a justiça é uma relação entre
indivíduos e depende da organização social.
– Platão enfatiza que para
se ter uma sociedade perfeita tudo tem que começar do zero. Em resumo: primeiramente
teríamos que tirar os filhos das mães, em seguida ensinar a eles um modo de
vida sem ganância, sem luxo e excessos, típico modelo dos homens ricos de
Atenas; teríamos de construir homens que se contentem com o que possuem e não
desejem as coisas de terceiros. Já naquela época, Platão achava um absurdo
aquele que adquirisse mais votos ocupar cargo de alta valia, porque nem sempre
o mais votado é o mais competente para tal cargo. A metodologia de Platão é
inviável, pois não percebeu que o grande culpado da “República” era o poder do
Estado.
– Para se ter pessoas
justas, fiéis a bons princípios éticos, devidamente equilibradas, com bom
senso, teríamos que aniquilar o Estado. Cristo sabia disso. Tanto que disse:
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e
quem vive e crê em mim, nunca morrera” (João 11:25-26). De certa forma, ele
sabia que aquilo iria matá-lo; qualquer um que se colocasse acima do Estado,
como ele se colocou, morreria daquela maneira. Sabia que, para ser livre, o
homem teria de ser bom e justo. Apenas os sábios (entre estes, podiam estar o rico,
o pobre que praticassem o bem e a caridade com a natureza e com o próximo) e os
filósofos seriam capazes de ser bons e justos.
– Platão escreveu que, segundo
Sócrates, para impedir a corrupção e a incompetência no poder público é preciso
criar um método eficaz de combate a essa maledicência. Porém, atrás desse
problema, estaria a psyké (alma) humana. Para Platão, tal problema vem
de três fontes principais do ser humano: o desejo, a emoção e o conhecimento,
que fluem do baixo ventre, coração e cabeça, respectivamente. Para um bom
governante, um homem apto a governar, as três fontes deveriam estar
perfeitamente equilibradas; para isso, é necessária muita sabedoria e uma longa
preparação. Platão assume que o mais indicado para esse cargo seria o filósofo:
“enquanto os filósofos deste mundo não tiverem o espírito e o poder da
filosofia, a sabedoria e a liderança não se encontrarão no mesmo homem, e as
cidades sofrerão os males”.
Bangse assim refletiu sobre
essas ideias:
– O filósofo, o sábio, jamais vai querer
liderar para comandar. O filósofo, com tais características, jamais gostaria de
assumir tal poder. Platão erra! Platão está errado! Um mundo comum, um mundo
igualitário, em que a diversidade existiria enquanto diversidade, em hipótese
alguma necessitaria de um líder, e sim de uma população de sábios e filósofos.
Os homens comuns devem ser educados para transcender os limites da aprendizagem
medíocre existente na educação atual. Precisam conhecer e ultrapassar as
possibilidades a partir da superação que o Estado com todo seu poder inibe.
– Todas as manifestações
de aprendizagem, das quais os indivíduos podem formar uma representação
psíquica, através de quaisquer sistemas de signos, devem ser substituídas pela
concreta aprendizagem com a natureza e com outros homens sábios. Aqui surge uma
pergunta: como fazer isso? A resposta é: leiam! A partir do momento que tivermos
uma população com o hábito de leitura, uma população consciente de suas ações,
centrada na compreensão do mundo natural, social, histórico e religioso, talvez
possamos organizar-nos e reajustar-nos
como verdadeiros seres humanos. Seres equilibrados, vivendo pacificamente no
mundo cultural que nos rodeia. O livro é um instrumento decisivo no
desenvolvimento do homem livre e equilibrado, do homem que não busca o poder
para si e sim para o coletivo. Para o coletivo, no sentido total da palavra,
isto é, que abrange as coisas e as pessoas, que pertence ao homem e à natureza.
– Entretanto, não podemos pensar no coletivo
como o sucesso de alguém em detrimento de outro; um exemplo é destruir um
espécime em beneficio de outro. O homem deve descobrir em seu mais puro íntimo
o reflexo do cosmo como princípio unificador da supremacia humana, que é o
conhecimento. O livro dá ao homem a experiência e o conhecimento necessários
para estabelecer bases que transcendem o simples saber pelo saber. É o único
meio de alcançar o conhecimento do mundo fenomênico.
DEBATE: BANGSE X ZARATUSTRA
Provavelmente o eleitor tenha
curiosidade como seria o debate entre Bangse e Zaratustra§.
Assim, Bangse descreve como seria na sua visão tal debate.
Sobre a Alma:
– “Eu sou por inteiro
corpo e nada mais”. Não há como negar o corpo, se o corpo é o ser
próprio, isto é, tudo que sei de minha existência. A alma é um
instinto ligado à ação ou movimento. Os metafísicos exibem
seus pensamentos com uma colossal violência contra o corpo, feita no processo
de contenção dos instintos, que é chamada interiorização de si – em busca da
alma. “Todos os instintos que não se descarregam para fora se voltam para
dentro. – Isto é o que eu chamo de interiorização do homem, é assim o que no
homem cresce e que depois se denomina sua alma”. Eu vos digo que a alma é isso. – disse Zaratustra,
olhando fixamente para Bangse e, em seguida, perguntou: O que pode me dizer
sobre a alma?
– A alma é simplesmente o
equilíbrio das emoções e dos desejos construídos. – disse Bangse.
–
Tu és simplório demais para meu gosto! – falou Zaratustra.
–
Sim, este sou eu! – exclamou Bangse.
–
O que achas que és, meu caro Bangse? – indagou Zaratustra que, ao mesmo tempo,
respondeu: – Tu nada mais queres que te tornares um Super-homem.
Agindo
exatamente como Zaratustra, Bangse olhou fixamente para os olhos de Zaratustra;
depois, abaixou lentamente a cabeça e respondeu com uma pergunta:
–
O que entendes ser um Super-homem?
–
Como lerás em meus escritos, homens superiores são “Homens animosos, corajosos!
Homens francos!” – respondeu Zaratustra, sem aprofundar-se muito.
–
Tu mesmo disseste: “Desprezastes homens superiores”: é isso que me faz esperar,
porque os grandes desprezadores são também os grandes reverenciadores. – disse
Bangse, voltando a olhar fixo nos olhos de Zaratustra. Tu desprezaste Cristo, desprezaste Buda. Se quiseres reverenciar
alguém, que assim seja; se não queres, que assim também o seja.
– Por que defendes homens
que pregam a igualdade se não somos iguais? Há os dominantes e os dominados. É
assim na natureza e nas coisas. Assim é, e assim será. – afirmou Zaratustra,
não deixando intimidar-se com os olhos de Bangse.
– Num paradoxo, homens
dominantes também são dominados, ou pelo poder ou pelo conjunto de homens que
eles dominam, assim temos um equilíbrio. E na natureza, tanto os vegetais, os
animais como as coisas se equilibram quando mantêm a harmonia que gera outras
vidas, outras coisas. É a lei natural das coisas, tudo se transforma para gerar
outras vidas, outras coisas.
– Pois continuo a afirmar:
“Para mim, o Homem superior é o primeiro e o único, e não o homem: não o
próximo, o mais pobre, nem o mais aflito, nem o melhor”. O equilíbrio de que
tanto falas nada mais é que outra força.
– Tu mesmo disseste: “O
que eu posso amar no homem é ele ser uma transição e um fim”. Se o homem é uma
passagem, que mal há em alguém que prega o amor ao próximo, ou o cuidado com o
outro. É um bom modo de viver, sendo retribuído da mesma forma. Que mal há em
ser pacato e modesto. Por que temos que ser senhores do mundo e não senhores de
nós mesmos? Por que temos de ser senhores dos outros? – indagou Bangse.
– Não entendeste nada!
Repetirei mais uma vez: “Subjugai-me esses senhores atuais, subjugai-me essa
gentinha: é o maior perigo do Super-homem”. – sorriu Zaratustra, acreditando
fielmente que não obteria uma boa resposta de Bangse.
– Sei exatamente a que
homens te referes. – disse Bangse, antes que Zaratustra voltasse a falar. O
homem superior que desperta, como você mesmo pergunta e diz em seguida: “Tendes
valor, meus irmãos? Estais decididos? Não falo de valor, perante testemunhas,
mas de valor, de solitários, valor de águias, do que não tem por espectador
nenhum deus”.
Zaratustra percebeu que
Bangse o conhecia muito bem, mas não aceitava ser interpretado por um medíocre
professor.
– “As almas frias, os
cegos, os bêbados não têm o que eu chamo coração. Coração tem aquele que
conhece o medo, mas domina o medo; o que vê o abismo, mas com arrogância”. “O
que vê o abismo, mas com olhos de águia; o que se prende ao abismo com garras
de águia: é este o valoroso”. “O homem é mau” – falou Zaratustra.
– Que mal há em ser bom? Em
ter medo? Tu afirmaste que o “mal é a melhor força do homem”. E também que o
“maior mal é necessário para o maior bem do Super-homem”. – Bangse se preparou
para um longo discurso. A humildade me parece o maior bem de um possível
Super-homem. O humilde está livre da responsabilidade de se tornar um
Super-homem. Por si, ele é o cordeiro, pois se mantém em equilíbrio entre o bem
e o mal – Bangse disse, referindo-se à população em geral e novamente utilizou
os dizeres de Zaratustra quanto aos homens superiores. Sei que disseste: “Só
assim cresce o homem até à altura em que o raio o fere e aniquila! Há
suficiente altura para o raio!”, porém não acredito ser este o duradouro do
“ser do homem”, com certeza é o que irá cegá-lo. Sei que não há como interferir
em tamanha desigualdade globalizada§. – Zaratustra continuou a ouvir
atentamente, esperando uma oportunidade para falar no momento certo.
Bangse prosseguiu:
– O erro de um possível
homem superior a que te referes é que “a ausência de ardor difere muito do
conhecimento”, e Tu não crês nos “espíritos frios”. Tu disseste que quando
“pode mentir ignora o que é a verdade”; na realidade, ele precisa do outro para
sobreviver, necessita do outro para manter-se em erupção, precisa do outro para
ser o que é, deve ter essa consciência e tratar o outro como igual, um outro
Super-homem, por mais humilde que este seja. Assim, a harmonia, o equilíbrio no
tratar o outro, no tratar o próximo, no acreditar num possível Deus fará desse
Super-homem um verdadeiro Ser-homem.
Zaratustra tentou
interromper Bangse, dizendo: “a vossa vontade, eis o vosso próximo”. Bangse não
se deixou intimidar e continuou seu discurso:
– Não acredito que, como
afirmaste, “pelo próximo não passa de virtude dos pequenos”; não
acredito que tal gente não tenha o direito nem a força de entender aquele que
disse: “Uma mão lava a outra” ou “Como fizeres assim acharás”. O egoísmo, como
a vaidade demasiada destroem a alma, amarguram o coração, levando o sujeito a
doenças somáticas. O amor próprio não é nada sem o amor ao outro.
– Não sei como ainda não
foste crucificado! – exclamou Zaratustra ironicamente.
– Já sou crucificado em
vida. Esqueceste que sou professor na periferia da cidade de São Paulo, no
Brasil. – disse Bangse, com um sorriso de Monalisa entre os lábios.
– Como já disse
anteriormente aos homens, repito: “Não queirais ser mais virtuosos do que vos
consentem as próprias forças. E não exijais de vós coisa que seja
inverossímil”. Entendeste ou queres que te explique melhor? – Ao mesmo que
Zaratustra perguntava não queria ser interrompido; por isso, continuou: – Isso
quer dizer que “aquele que quiser ser o primeiro livre-se de não ser o último.
E não coloqueis a santidade onde estejam os vícios de vossos pais”. Sabes muito
bem do que falo.
– Uma hora dizes que não
entendo; outra, que sei muito bem o que falaste! – Mais uma vez, Bangse
permaneceu com seu sorriso de Monalisa entre os lábios. – A verdade é
construída por Vós; Vós construístes vossa verdade; Eu construí a minha. E cada
Ser homem que construa a sua. Porém, antes deves saber, deves conhecer através
dos livros, da História, dos homens, dos filósofos, da política, da vida. E
somente após esses conhecimentos deverás construir a tua verdade. São
necessários pré-requisitos para construirmos nossa verdade. É preciso conhecermos
nossos desejos e sabermos sobre a nossa psique para podermos lhe dar com a
verdade. Ela não está no sádico, no perverso, no egoísmo. A verdade está em vós,
em vosso sorriso, em vossa tristeza.
Pegando uma palavra de
Bangse, Zaratustra iniciou sua versão da verdade:
– Esqueceste o que falei
sobre o sorriso? – Olhou dentro da alma de Bangse e perguntou: – “Qual tem sido
hoje, na Terra, o maior pecado? Não foi a palavra daquele que disse: ‘Pobres
dos que riem aqui?’”
– Acho que não
compreendeste direito essas palavras. – falou Bangse.
– “Seria porque não
encontrava na terra nenhum motivo de riso? Então procurou mal. Até uma criança
encontra aqui motivos”. Ele provavelmente não amava bastante, senão
“amar-nos-ia também a nós, risonhos! Mas anatematizava-nos e odiava-nos,
prometendo-nos gemidos e ranger de dentes”. Essa é a tua verdade? – indagou
Zaratustra. “Por não se amar é logo maldizer? Isso é coisa de mau gosto. E foi
o que fez aquele intolerante, saíra da populaça”. – balançou a cabeça e, fixando
o olhar em Bangse, continuou: “Ele é que não amava bastante; senão
irritar-se-ia menos por não ser amado”. Acredito que Tu és igual: “o grande
amor não quer amor: quer mais”. Tu e tua verdade, Tu e tua maledicência.
“Afastai-vos do caminho de todos esses intolerantes! É gente pobre, enferma,
plebéia; olham esta vida malignamente, dão mau-olhado à Terra”.
– Primeiro: ao referir-se
aos “pobres dos que riem aqui”, ele disse em relação àqueles que desfazem do
outro, que riem da desgraça alheia, que aproveitam da fraqueza dos menos
favorecidos. Segundo: ele pretendeu mostrar que a vida é difícil, que podemos
ser “menos piores”. Podemos ser menos egoístas, menos orgulhosos, menos
vaidosos e, sobretudo, menos infelizes. – disse Bangse.
– Às vezes Tu me pareces
tão sábio em tua fala, mesmo eu sendo contra. Por vezes me pareces tão medíocre.
– retrucou Zaratustra com ar sarcástico e prosseguiu: – “Todas as coisas boas
se aproximam do seu fim por maneira tortuosa. Como os gatos, arqueiam o lombo e
rosnam interiormente, recreando-se com a sua próxima felicidade; todas as
coisas boas riem”.
– Rir de nossas desgraças
é saber conviver com o que passou. Rir da desgraça alheia é maledicência,
perversidade. Cada um deve saber quando rir e quando chorar ou quando rir e
chorar. O gato se espreguiça ao sol, brinca com o rato, por vezes até o come,
mas quando se defronta com o cão é difícil recrear-se com sua próxima
felicidade. – disse Bangse, enquanto esfregava uma mão na outra.
Zaratustra saiu do assunto
e perguntou:
– Do que tens medo,
Bangse? Por que essa mania de sempre esfregar uma mão na outra? Tens frio?
– O que desejas que
responda? – indagou Bangse – Por que foges do assunto?
– “Eu, Zaratustra, o
dançarino, Zaratustra, o leve, o que agita as suas asas prontas a voar,
acenando a todas as aves, ligeiro e ágil, divinamente leve e ágil; eu,
Zaratustra, o adivinho, Zaratustra, o risonho, nem impaciente nem intolerante,
afeiçoado aos saltos, eu mesmo cingi esta coroa”. Tu tens medo da solidão, de
não seres amado. Tu tens medo que teu Deus te abandone. Tens medo da loucura. É
assim que te vejo. – respondeu Zaratustra.
– Pareces-me
um bom bailarino. É assim que queres que eu te veja? O perfeito Super-homem,
capaz de saber tudo sobre o homem, sua existencia, sua felicidade, sua
amargura. Como Tu mesmo disseste: “Alçai as pernas, bons bailarinos, e
suster-vos-eis até a cabeça”. Antes que digas que não entendi, quero dizer que
sei perfeitamente o que quiseste afirmar. – replicou Bangse.
Zaratustra se empolgou, como quem fala a uma grande multidão:
– “Mais vale estar
doido de alegria do que de tristeza; vale mais dançar pesadamente do que andar
claudicando. Aprendei, pois, comigo a sabedoria: até a pior das coisas possui
dois reversos, até a pior das coisas tem pernas para bailar; aprendei, pois,
vós, homens superiores, a afirmar-vos sobre boas pernas”. “Esquecei a
melancolia e todas as tristezas da populaça. Como hoje me parecem tristes os
arlequins plebeus! Mas isso hoje pertence à populaça”. “Fazei como o vento quando se precipita das
cavernas montanhosas; quer dançar à sua vontade. Os mares tremem e saltam à sua
passagem”. “Louvado seja aquele que dá asas aos burros e ordenha as leoas, esse
espírito bom e indômito que chega como um furacão para tudo o que é de hoje,
para toda a populaça! Louvado seja o inimigo de todas as folhas murchas; esse
espírito de tempestade, esse espírito selvagem, bom e livre que dança nos
atoleiros como no meio dos prados!
Bendito seja o que odeia os cães da populaça e a toda essa ralé
malograda e sombria! Bendito seja esse espírito de todos os espíritos livres, a
tempestade risonha que sopra o pó nos olhos de todos que vêem negro e estão
ulcerados. Homens superiores, o pior que tendes é não haver aprendido a dançar
como é preciso dançar: a dançar por cima das vossas cabeças! Que importa não
terdes sido felizes? Quantas coisas são ainda possíveis! Aprendei, portanto, a
rir por cima de vós. Elevai, elevai cada vez mais os vossos corações, bons
bailarinos! E não esqueçais também o belo riso! Esta coroa do risonho, esta
coroa de rosas, lanço-a eu para vós, meus irmãos! Canonizei o riso; aprendei,
pois, a rir, homens superiores!” Onde está teu Deus, Bangse? Para mim, “Deus
está morto”. – Assim falou Zaratustra.
– Compreendo o que
dizes. Falaste com a alma, com o coração. Tu com tua sabedoria, num paradoxo, me
fazes acreditar num Deus. Sei que acreditas que a religião, o Cristianismo,
leva o homem em busca de uma verdade extraterrena, afastando o homem da
realidade. Acreditas que a moral pregada pela igreja nega os instintos humanos
através do conceito de pecado.
Bangse sabia que toda vez que esfregava uma mão na outra desviava o olhar
de Zaratustra para suas mãos, por isso fazia frequentemente.
– Porém, Tu já
ouviste falar das parteiras do nordeste brasileiro, seus depoimentos, sua
simplicidade, seu amor ao fazer um parto e ver a vida de uma criança em seus
braços, ali vejo Deus. Quando ouço as músicas de Mozart, Beethoven, entre outras
da música clássica renascentista, que poderia citar com muitas linhas, e alguns compositores de meu
tempo como Baden Powel, Yamandu Costa; ou quando vejo os quadros dos grandes
pintores, o equilíbrio nas formas, na discordândia, na harmonia, na revolta, na
história, nas emoções, nos sentimentos; ou mesmo na tecnologia, na ciência, na
literatura, na filosofia, na medicina, na química, na física; ou nos
sobreviventes, nos mendigos, nos deficientes; ou no entrelaçamento em que vive
a sociedade, suas formas, suas relações, suas culturas. – Bangse esfregava uma
mão na outra enquanto discursava: – Deus
não é simplesmente a conversa internalizada de ti contigo mesmo, Deus é o “Qi
Pleno”, o puro equilíbrio, o homem, o Super-homem, não o teu Super-homem, mas o
nosso Super-homem. Aquele que não é Bom nem Ruim, apenas é. E ao mesmo tempo se
encontra entre o Bom e o Ruim, exatamente em seu equilíbrio.
– Prove! – exclamou
Zaratustra.
– No equilíbrio não há
vitorioso, no empate não importa a quantidade; é sempre o equilíbrio em seu
infinito que permanece. Um emaranhado de linhas pode estar equilibrado, não são
necessárias duas retas paralelas perfeitamente iguais para se estar em
equilíbrio. Equilíbrio não é ser igual.
– O que é o “equilíbrio infinito”? – perguntou
mais uma vez Zaratustra.
– É o equilíbrio material,
corporal/físico, da alma. Material: forças que emergem da matéria; corporal, físico é o homem em si,
seu sistema nervoso, seu cérebro, seu corpo como um todo no espaço; a alma, o
social, o cultural.
– O homem é escravo de sua cultura. –
disse Zaratustra.
– Não necessariamente! – falou Bangse.
– Sobe em mim e te levarei com minhas
asas voando. Viajando pelo teu tempo, eu te mostrarei onde está teu Deus. – disse
Zaratustra.
– Não preciso de asas para voar. Vamos?
– indagou Bangse sobre a partida.
– Ok! Vamos! – Zaratustra ironicamente
o chamou e partiu primeiro.
Voando no alto, os dois
passaram pela cidade e Zaratustra, apontando para uns mendigos deitados e lendo,
disse:
– Onde está teu Deus?
Em seguida, ao verem
algumas crianças fumando craque, Zaratustra indagou mais uma vez:
– Onde está teu Deus?
Ao passarem por um
presídio em que estava havendo uma briga entre os detentos (briga interna),
Zaratustra perguntou:
– Onde está teu Deus?
Mais à frente havia um
hospital com muitos enfermos e pessoas entrando na emergência devido a um
acidente; Zaratustra perguntou:
– Onde está teu Deus?
Zaratustra propôs ir mais
rápido em direção ao norte e nordeste do Brasil. Bangse aceitou e partiram
voando bem alto.
Após algum tempo sobrevoaram
o centro do Brasil e Zaratustra quebrou o silêncio:
– Nem vou comentar o
que ocorre aqui embaixo. – Ironicamente Zaratustra falou para Bangse: – Sem comentários! Em que lugar se encontra
teu Deus? Será que é aqui?
Mais um tempo se passou e novamente
Zaratustra quebrou o total silêncio:
– Chegamos. Olhe
aquelas crianças, aquela família! Todos passam fome. Não passarei pelo sul,
onde ocorreu a enchente em Santa Catarina: mais fome, pessoas perdendo tudo,
inclusive a vida dos amigos e parentes. Onde está teu Deus? Como podes ser feliz com tanta miséria e desgraça?
Acho melhor eu parar por aqui. O que tens a me dizer? Será o xeque-mate?
De novo, o silêncio
permaneceu durante a viagem em que ambos voltaram para São Paulo. E Zaratustra
finalizou com:
– Esta é minha
cartada final. O que tens a me dizer?
– Em primeiro lugar
não sou totalmente feliz. Vivo em equilíbrio, em harmonia com meus momentos de
tristeza e felicidade. Entre o bem e o mal há o bom e o ruim; entre a vida e a
morte há alegria e sofrimento. Em seguida, Bangse abriu os braços dizendo: – Entre minha mão esquerda e a direita
há meu coração. Aquele que muito tem sofre mais quando perde do que aquele que
nada possui. A pessoa que come muito sofre mais pelo excesso§
do que a que passa fome. A doença e a pobreza fazem parte da vida como a saúde
e a riqueza.
Zaratustra interrompeu
Bangse:
– E daí?
– Daí que a vida é o momento, é o
sofrimento, é a alegria. Todos que nascem têm direito à vida, sendo ela curta
ou longa, tenha ela dificuldades (doença, miséria, etc.). O segredo é saber
viver todo momento. Encontrar o equilíbrio onde houver tristezas, onde houver
enfermidades, onde existirem desavenças. Cada um de nós tem a capacidade de
autorreformularmos, autoajudarmos, autoestabelecermos uma união entre a causa e
o efeito, entre o momento vivido, o que passou e o que está por vir. Se esse
momento for um sofrimento, encontraremos momentos de alegria. Podemos achar
alegria no sofrimento. Podemos ser felizes mesmo no momento de fome e miséria.
Nem a felicidade nem tampouco a tristeza são eternas; são apenas momentos. Já a
vida é eterna; e se acaba, não é vida, é momento. – disse Bangse.
Zaratustra balançou a cabeça
enquanto ouvia atentamente as palavras de Bangse. E como num susto, interrompeu-o
repentinamente:
– Tu usas as palavras
arbitrariamente! Procuras conceituar e explicar de modo muito subjetivo. Tens
que tomar cuidado, pois “todo conceito nasce por igualação do não igual. Assim
como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a outra. É certo que o
conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças
individuais, por um esquecer-se do que é distinto, e desperta então a
representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo que fosse
‘folha’. Eventualmente uma folha primordial, segundo a qual todas as folhas
fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por
mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno
como cópia fiel da forma primordial”. Por alguns momentos prefiro quando
utilizas explicações nas quais usaste teu argumento do equilíbrio, do universo,
do cosmo, etc. É bem mais atraente que essa justificação um tanto poética. Tu
sabes que o signo verbal nos engana quando tentamos desdobrá-los em realidade.
Fala-me da tua língua, da tua história, da existência do infinito, do nada, do
nirvana, da existência de um possível Deus e seu “Qi Pleno” e partirei
derrotado.
– Certo, meu caro Zaratustra! Tu vives o
estado evolutivo do cosmos, em que o universo vai se expandindo com velocidade
constante, através do tempo infinito. E o universo resulta de uma brusca
explosão da matéria original bastante densa que a princípio se expandiu e aos
poucos vai decrescendo devido à força que a atração gravitacional opõe a tal
expansão. Eu vivo o entrelaçamento de várias explosões infinitamente
equilibradas do big-bang ao big-bang, de infinitos círculos de existências. Tu
reforças a ideia do universo evolucionário através da vontade de potência, identificas a vontade de potência com a vida e
com tudo o que existe no universo, com a densidade, a matéria dos cosmos e a
própria geometria do espaço e suas curvaturas, com o pensamento, a emoção, a
alma. Por outro lado, Eu, o medíocre Bangse, busco o equilíbrio em sua forma
mais pura e infinita, sem proporções de tempo, espaço, velocidade, distâncias;
não há um tipo de universo fechado, um “efetivar-se da força” com poder
absoluto, como a tão bem apresentada por Vós “vontade de potência”. Há
equilíbrio infinito e pleno nas reações químicas constantes da matéria, em que
o pensamento, a emoção, a alma e a própria vida são tipos de reações
equilibradas termonucleares que se fundem. Olha: o universo está cheio de
incontáveis corpos materiais§. A “Caprichosa”, estrela conhecida
como companheira de “Sírius”, é uma anã branca de densidade cuja matéria é tão
densa que quinze centímetros cúbicos dela pesam aproximadamente uma tonelada na
Terra. Sua densidade é tão forte que seu campo perturba os movimentos de
“Sírius”. Porém, vivem num absoluto equilíbrio.
– Isso somente justifica
a vontade de potência. – disse
Zaratustra.
Esfregando a mão na outra,
Bangse continuou:
– Não! Não! Assim é o princípio da
relatividade geral. Apesar de ser, em aparência, forçosamente infinito, e como
jamais imaginado, o equilíbrio é absolutamente infinito (“Qi Pleno”). Como os
próprios astrônomos concluíram, há
0,000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.001§grama
de matéria por centímetro cúbico de espaço. Isso porque eles não consideraram os
infinitos ciclos de explosões do big-bang ao big-bang.
Ambos permaneceram em
silêncio por alguns instantes e Bangse não parou de esfregar a mão na outra.
Antes que Zaratustra falasse, Bangse estava prestes a completar seu argumento:
– Como vês, meu caro
Zaratustra, o “Qi Pleno” é exatamente todo pensamento que presenciaste até o
momento, tanto seu, quanto meu. É o equilíbrio entre aqueles que consideram em
verdade as tuas palavras e aqueles que consideram as minhas palavras. Porém, o
equilíbrio não para por aí:
Amor = 4 letras
Deus = 4 letras
– Zaratustra, percebes que a soma é
oito. O oito deitado é o símbolo do infinito. A palavra “infinito”, em
português, tem oito letras. – disse
Bangse com certo brilho nos olhos e continuou: O Planeta Terra possui quatro
pontos cardeais (norte, sul, leste, oeste); somados aos seus quatro elementos
(terra, água, ar e fogo), temos também o número oito. A Cruz conhecida há mais
de 5000 anos pelos antigos Babilônios, Chineses, Egípcios e o povo
Pré-Colombiano possui dois braços (um na horizontal e outro na vertical, que se
cruzam no meio), que se prolongam para o infinito em direções opostas, céu e
terra, tempo e espaço; observamos quatro pontas. Se somarmos aos quatro apóstolos
(Mateus, Marcos, Lucas e João), também temos como resultado o oito, que deitado
é o símbolo do infinito.
– Isso é ridículo! – falou Zaratustra. Há muitos grãos de areia
no deserto, mas quando termina o deserto acabam os montes de areia.
– Acabam os montes de
areia, mas podemos encontrá-los em qualquer parte, até no fundo do mar. E os
encontramos em outros planetas ou até mesmo no espaço.
– Não descerei tanto
meu nível. Isso é ridículo! – disse
mais uma vez Zaratustra, acreditando que as palavras de Bangse não passavam de
uma filosofia oriental sem valor.
– Shakespeare§foi
feliz quando escreveu que “entre o céu e a Terra há muito mais mistério que a
razão humana desconhece”. – prosseguiu
Bangse. Faço uso dessa frase, pois “ela” me permite dizer que o infinito é um
enigma, inexaurível ao ser humano. Isto é, a razão humana não conhece as possibilidades
no infinito, até porque há infinitas possibilidades. A matemática nos empresta
um delicioso sabor de trapaça às verdades anunciadas. Na matemática, se
retirarmos um elemento a um conjunto infinito, restará não apenas um número a
menos, mas exatamente o mesmo infinito de antes. Não importa quantas vezes você
o repete e o resultado será sempre o mesmo. Ferrater§
possui vários conceitos de “infinito”, e o que mais me agrada é quando
descreve: “o infinito é algo indefinido, por não ter fim ou limite”.
– Nego-me a compartilhar de tanta
asneira! – exclamou Zaratustra e saiu voando, a bater suas enormes asas. – Dê-me como derrotado.
Bangse olhou para cima e
gritou para Zaratustra:
– Tu não foste
derrotado; há um empate: 0 x 0, ao juntarmos: “ ”
Bangse, introspectivo, viu
Zaratustra apenas como um pontinho no céu:
– Que ser fabuloso,
apenas ele poderia escrever: “Aquele que escreve em letras de sangue e em
máximas não pretende ser lido, mas aprendido de cor”.
FINAL
Para o nada pouco importa a força. Para o nada tudo acaba
em equilíbrio. Tudo entra em equilíbrio seja emocional, material, psíquico ou
físico. O caos termina em equilíbrio. Na maioria das vezes, uma obra de arte é
o equilíbrio do homem desequilibrado. Veja-se a natureza.
– O maior inimigo do homem é o Estado,
porque ele tem o poder somente para si, causando um grande desequilíbrio,
tirando a parte que cabe ao homem.
Diferente do que afirmava
Nietzsche, Bangse expôs suas ideias:
– O maior inimigo, causa de tantos transtornos,
não é a igreja, nem tampouco a religião. A religião apenas existe porque assim
o Estado permite. O poder que o Estado possui admite uma ou outra religião, uma
ou outra igreja. Religião ou igreja que lhe agrade ou lhe traga benefícios,
seja através da preservação do poder do Estado, seja através do apoio daqueles
que integram e constituem essas religiões.
O Estado trata as religiões como um departamento público, um ministério.
Aquelas que mais lhe agradem têm os maiores e melhores benefícios. Por isso,
caros amigos, eu vos digo que, sendo cordeiro da religião, Tu tens grandes
possibilidades de ser cordeiro da igreja. Isso não quer dizer que não existam
ou existiram grandes Homens nas Religiões ou Igrejas. Homens bons, justos que
encontraram ali um caminho para ajudar o próximo, trabalhando em benefício do
outro.
Bangse sabe “quanto” “o
poder do Estado” exerceu influência sobre a construção da sua alma; e também “quanto”
a religião influenciou no seu modo de agir e pensar. Ele tem conhecimento de
quanto a igreja católica foi usada, ou como aliada das conquistas,
escravizando, mudando culturas, perseguindo, matando em nome de um deus para
beneficiar-se a si e aos seus (homens e estado). Também sabe acima de tudo:
– O Estado tem poder
sobre aquilo que tenho e, por vezes, tem poder sobre o que sinto. Porém, ele
nunca terá o poder sobre aquilo que sou, em relação à minha alma. Em um
paradoxo, o poder exercido pelo Estado influencia sua construção, mas ele não
tem poder sobre aquilo que você procura ser; sobre seu “eu” com as devidas
funções psíquicas§equilibradas, nesse entrelaçamento e
combinações que formam seu consciente.
Bangse não gosta do poder
que o Estado exerce sobre os homens.
– O Estado dá ao homem a
liberdade para pensar, favorece o sentimento de vaidade e de orgulho; o Estado
lhe dá a sensação de domínio sobre si; o Estado o contempla com a intuição, com
o desejo de pressentir o melhor, ou perceber aquilo que é melhor ou pior. O
Estado possui o poder de ditar o modelo de vida a ser seguido. Porém, ao mesmo
tempo em que Te liberta para pensar, te pune quando ages contrariando suas
normas e leis; da mesma forma, favorece o sentimento de vaidade e de orgulho
que apenas, e somente apenas, enobrecem aqueles que detêm ou visam a deter o
poder.
– Durante a juventude
do homem e em quase todo seu processo de amadurecimento, o Estado lhe permitiu ter
a sensação que tudo pode e tudo é permitido, e que tudo será um dia configurado,
mas, quando chega à velhice, vê o quanto foi tolo. O Estado humilha, como
humilhou os catadores de papelão, aqueles que estão submetidos ao seu poder.
Aqueles que assumem o poder do Estado também não estão livres, vivem submissos
pensando que esse poder pertence a “eles”. Porém, na realidade esse poder pertence
a todo um sistema. A todo um complexo e refinado conjunto de princípios,
regras, leis, interesses, etc. que originam e constituem o movimento que regula
a ordem deste fenômeno, “O Estado”. Todo Estado é o “Triunfo
da Vontade”. Todo Estado é Nazista em maior ou menor grau. Todo Estado
contraria o homem em seu “Qi Pleno”. Deus
salve os anarquistas!
Os pensamentos de Bangse
se misturam ininterruptamente:
– Não sejas dócil,
pois a docilidade afoga tua alma. Por outro lado, não sejas perverso, pois a
perversidade infernizará tua alma. A docilidade te fará o bobo da corte. O
cordeiro dos homens não sobrevive ao turbilhão no emaranhado das interações
sociais. O cordeiro se torna escravo de si, infundindo obrigações que afogam a
alma, amargurando-a, sufocando-a. E, com isso, adoece sua alma. A alma como está
conjugada ao corpo, ao adoecer, danifica o corpo; o corpo dói, sofre e padece.
A perversidade, tão má quanto a docilidade, tão inocente no seu âmago como a
docilidade, faz com que a alma se torne inerte à própria vida. Assim, a
perversidade leva à morte do corpo doentio.
– A magnitude
situa-se entre a docilidade e a perversidade, aqui se tem um equilíbrio. Não há
força entre as forças iguais; o vazio, o nada prevalece. É o vazio, o nada que
gera o equilíbrio de qualquer força, que aceita a força como ela é, que se
deixa invadir por tudo e, numa troca, invade tudo. Ao contrário de Nietzsche
que anuncia a “morte de Deus”§, reconheço a vontade de potência como
apenas uma partícula do vazio, do nada. Eu anuncio a “vida de Deus” e dou a
vida a ele, como Ele me deu a minha. Deus não como uma divindade suprema, mas
sim Deus como a imensidão do vazio. Deus, como o vácuo no pote da cozinha. Deus,
como as partículas que dão equilíbrio à natureza. Deus, como o centro da corda
que gera o equilíbrio entre as duas forças iguais no “cabo de guerra”. Deus
como o infinito, o qual não importa o quanto você acrescente ou tire, ele
continuará o mesmo.
Prestes a concluir seus
pensamentos, Bangse após longas noites de insônia falou: –
Se a probabilidade do
equilíbrio se iguala com uma força que puxe para um lado e outra que puxe para
o outro, em sentidos contrários: a essência das forças está no vazio. De certa
forma, em um dado momento ela se dispersará, cairá na existência do nada. O “Qi
Pleno” é o vazio da existência, é o equilíbrio na sua mais alta complexidade,
sem força, sem direção, sem ser, nem tampouco estar, é o Deus absoluto, Único,
Completo; está em tudo, ocupando todo espaço do nada.
– Assim, Eu declaro a
quem quiser ouvir: religiosos, ateus, homens e mulheres de todos os cantos deste
nosso planeta, deste nosso lar, “Deus
está vivo”! Deus vive em cada elemento, em cada vazio. A vontade de potência
de Nietzsche tem seu mérito por se encontrar no vazio da existência de Deus. Isso
porque ela faz parte tanto do equilíbrio das coisas relacionadas à natureza quanto
das interações sociais e do emaranhado que fundamentam a criação do Estado pelo
homem. O mesmo homem que criou o Estado tem o livre arbítrio para ser aquilo
que o Estado quer, ou ser aquilo que ele deseja no fundo de sua alma. O homem
tem o poder sobre o homem, sobre a natureza e sobre as coisas, porém pode viver
em pleno equilíbrio com tudo isso. Isso me permite dizer que o “Qi Pleno” é
“Deus”, e o Homem em seu mais absoluto equilíbrio é um Deus!
Bangse, num sentido mais
sublime, disse:
– Se eu fosse um Deus, daria ao homem
quantas chances, quantas oportunidades fossem necessárias, até que ele atingisse
sua plenitude máxima. A “natureza”, a chance de sobreviver. As “coisas”, de
poderem ser transformadas sem destruir o homem e a natureza. Desse modo, eu te
digo: ama teu “Deus” com toda tua glória e plenitude, com todo teu fervor e
magnitude, pois Tu és parte integrante do universo; Tu és o elemento Máximo da
imensidão do vazio; Tu és a energia que complementa a plenitude; Tu és o “Qi
Pleno”; Tu és um “Deus”.
Bangse assim finalizou:
– Portanto, em tua máxima identidade, em
teu mais puro eu, magnífico, esplêndido, majestoso, nobre e encantador: “AGE COMO UM DEUS!”
ANEXO
Pensamentos de Bangse:
O Estado, através de seus dirigentes, nivela a
educação por baixo, “e bem baixo”.
A criminalidade é banalizada nos seus mais
altos níveis e absorvida pelo educando.
A escola é subordinada aos centros de comando,
consequentemente negam-lhe a participação optativa e opinativa nas decisões.
Há indícios na construção dos alunos de
enfatizar a alienação. Por quê? Para a manutenção de um estado de dependência
semicolonial, que diz respeito aos países desenvolvidos e a um estado de
paternalismo tratando-se da troca pelo voto.
Na escola, a criança ou o adolescente é jogado
a uma sociabilidade em que o êxito pertence ao mais forte, mais desonesto, o
mais “sem educação”.
Na escola, entre os alunos, é valorizado o
mais desonesto, o mais arruaceiro. Uma agressão, seja ela qual for, eleva o
praticante a um patamar de nobreza.
A banalização da violência entra na escola
pública sem bater na porta. Ali é degustada, ingerida e transformada em energia
que atormenta professores e todos os envolvidos diariamente e, mais tarde, com
certeza atormentará a sociedade.
A escola é pública e serve a interesses
privados da elite.
O aluno, enquanto aluno, deve conhecer seus
limites e possibilidades; a partir disso, precisa buscar a superação.
Toda manifestação de aprendizagem de conteúdos
deve ser valorizada ao máximo e toda
representação de maledicência tem que ser submetida a uma punição. Concordo com
Nietzsche quando diz que a educação deve ser severa, dura e com poucos elogios.
Mais que ser um cidadão é ser você mesmo! Para
ser você mesmo, a educação deve ser “severa, dura e com poucos elogios”.
Há um paradoxo na
educação: se o professor não cobra do aluno ele vira um “Zé Ninguém” §;
se cobra, o aluno continua um zé ninguém, porque as possibilidades de ele não
se tornar um zé ninguém estão na educação.
Todos os esforços
referentes à educação deveriam ser dirigidos a dar sentido à vida, à natureza.
Só assim daremos um maior sentido para as pequenas coisas, para os pequenos
acontecimentos vividos por todos.
Desculpe-me, Paulo Freire,
mas entre uma educação sem qualidade e o refúgio no campo, prefiro um
analfabeto no campo.
Quando se trata de
educação, um longo passo não significa encurtar a caminhada, e sim causar uma
distensão no músculo da perna.
Poderíamos educar nosso
povo como nossos filhos, o problema é que nossos filhos são o nosso povo.
Ei aluno! Você mesmo! Se
acha que é homem, então saiba a hora de calar, sorrir ou chorar.
É mais cômodo deixar
centenas e centenas de pessoas viverem do mercado ilegal que arrumar emprego a
elas.
Se você acha que pode tudo,
pode acreditar: você pode!
Como atingir a perfeição:
viva sua vida sem querer o que é do outro ou aquilo que lhe é imposto pela
mídia.
Como saber se o que
realmente desejo não está sendo imposto pela mídia? É simples: – Leia! Você tem que conhecer a si
mesmo!
Você não fugirá dos
desejos impostos pela mídia, porém, lendo, saberá lidar com eles.
A essência do homem é ser
composto pela mesma matéria de uma estrela, só que com outro arranjo.
O que aproxima um homem
urbano de uma estrela? É que a estrela aprendeu a equilibrar-se na imensidão do
vazio, e o homem no meio da multidão.
Prefiro morrer atacado por
um leão durante uma caçada a ser atingido por uma bala perdida nas maravilhosas
praias do Rio de Janeiro.
O índio é livre. A partir
do momento em que se tornar um cidadão, ele se tornará escravo do Estado.
Tome muito cuidado, pois o
Estado tem o poder de arrancar sua alma. Leia muito e livre-se do poder do
Estado.
Como você faz para ser
você? – Leia!
A marginalidade só existe
porque o Estado permite.
Quanto mais o cidadão se
achar livre, mais o Estado se apodera de sua alma.
O cidadão é escravo do
Estado, o índio é livre.
O Estado jamais dará
liberdade a alguém, até porque ele não tem esse poder.
Um verdadeiro amigo sempre
ajuda o outro. O melhor amigo do Estado é a classe política partidária. O maior
inimigo é a oposição, mas ela pode ser comprada.
O que equilibra o
orçamento da União para pagar os aposentados são os cidadãos assassinados antes
mesmo de se aposentarem.
A morte não me parece tão
ruim, mas ser internado em um hospital público, hum!
A Bíblia tem um poder
enorme enquanto lida.
A Bíblia tanto pode
escravizar-te quanto te libertar; depende de quem te mandou lê-la.
Tu nunca serás perfeito,
mas poderás tornar-te melhor.
Por mais que faças, nunca
conseguirás retribuir às pessoas mais íntimas. Porque elas te deram tanto que
não há objetos, palavras ou dinheiro que retribua, mesmo que seja um “tapa na
cara”.
Embora saiba que o medo é
uma necessidade para a sobrevivência, acredito que a maior virtude do homem é a
coragem.
Coragem é ter calma na
continuação de uma tarefa por mais difícil e demorada que seja. Porém, é o medo
que nos avisa o momento de parar.
As pessoas que me fazem
sorrir são as mesmas que me fazem chorar.
Deus criou a sombra para
aqueles que não gostam de sol. E o homem, o protetor solar para aqueles que não
querem ficar parados à sombra, nem tampouco queimar ao sol.
O chato de ser chato é
sentir-se chato e incapaz de sair da chatice.
Desejar sempre é uma
necessidade fisiológica. Porém, desejar o que é bom é sinal de conhecimento.
Para o Estado consertar o
mundo é ilegal, imoral ou engorda.
Você não é mais que
ninguém, mas é alguém!
Só uma coisa me
entristece: “eu”!
Aprenda a conviver com
você para nunca ficar sozinho.
Para ser um Deus não é
necessário ser um homem, mas para ser um Homem é necessário ser um Deus.
§ Nietzsche, em sua obra “Assim falou
Zaratustra”, diz: “onde encontrei vida, encontrei vontade de potência”. E,
segundo ele, a vida é a superação de si mesma.
§
Panteísmo: doutrina que
identifica o universo (em grego: pan, tudo) com Deus (em grego: theos).
Em diversas culturas panteístas, a ideia de um Deus que existe em tudo
complementa e coexiste pacificamente com o conceito de múltiplos deuses
associados aos diversos elementos da natureza.
§ Monismo: originado da palavra grega monos,
“um”, que diz respeito às teorias filosóficas que defendem a unidade da realidade
como um todo (em metafísica) ou a identidade entre mente e corpo (filosofia da
mente).
§ Plotino (205 a 270 d.C): nascido em
Licópolis, Egito, foi discípulo de Amônio Sacas durante 11 anos e mestre de
Porfírio, que nos legou seus ensinamentos em seis livros de nove capítulos cada,
chamados de “As Enéadas”.
§ A síndrome das pernas inquietas foi
descrita pelo neurologista sueco Karl-Axel Ekbom em 1947. Caracteriza-se por
uma desordem neurológica, por alterações da sensibilidade e desconforto nos membros
inferiores, porém pode acometer também os braços. A síndrome atinge 5% da
população em geral e 10% dos idosos.
§ Palavra originada do latim vacuum:
significa o vazio, que não contém absolutamente nada, um espaço circunscrito
sem matéria.
Na
matemática, o vazio (representado graficamente por Ø) é o conjunto
que não possui elementos. Como todos os conjuntos vazios são iguais uns aos
outros, é permissível falar de um único conjunto que não possui elementos. A
união do conjunto vazio com qualquer conjunto X é X. A intersecção do conjunto
vazio com qualquer conjunto X é o conjunto vazio. Logo, ele possui zero
elementos; em termos formais pode-se afirmar que o número inteiro zero é o
conjunto vazio.
§ Emmanuel Kant (1724 – 1804), filósofo
alemão considerado o último filósofo dos princípios da era moderna, foi um
verdadeiro representante do Iluminismo.
§ A posteriori tem como
oposto a priori; faz parte de uma expressão maior a posteriori ratione:
raciocínio baseado no que veio depois. Um raciocínio a posteriori precisa
apoiar-se na experiência, ou seja, em fatos obtidos pela observação ou pelo
experimento.
§ Martin Heidegger (1889 – 1976):
filósofo alemão, fundador da fenomenologia, foi um dos maiores gênios da
filosofia do séc. XX. Influenciou grandes filósofos, dentre eles Jean-Paul
Sartre.
§ Jean-Paul Sartre (1905 – 1980):
filósofo francês com forte influência da fenomenologia.
§ Arthur Schopenhauer (1788 – 1860):
filósofo alemão da corrente irracionalista, introduziu o Budismo e o pensamento
indiano na metafísica alemã. Influenciou fortemente Friedrich Nietzsche.
§ Friedrich Wilhem Nietzsche (1844 –
1900): influente filósofo alemão, sua obra continua ainda hoje de difícil e
contraditória compreensão.
§ Leonardo di ser Piero da Vinci (1452
– 1519): pintor, arquiteto, engenheiro, escultor, cientista, músico do
Renascimento da Itália. Devido à sua multiplicidade de talentos, é considerado
um dos maiores gênios da história da humanidade.
§ Wolfgang Amadeus Mozart (1756 – 1791):
católico convicto, compositor e músico austríaco, foi o expoente máximo da
música clássica.
§ Cabo de guerra, conhecido também como
jogo da corda, fez parte dos Jogos Olímpicos de 1900 a 1920. É uma atividade
recreativa na qual duas equipes competem entre si em um teste de força. O cabo
é marcado num ponto central, cada equipe tem como objetivo puxar a equipe rival
de modo a fazê-la cruzar a linha central.
§ Lev Semionovitch Vygotsky (1896 –
1934): grande pensador russo, teve sua importância como pioneiro na noção de
que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interações
sociais.
§ Neste sentido, o desequilíbrio é o
engordar ou emagrecer. É uma resposta do organismo ao excesso ou à falta.
§ A palavra trófica é originada
do grego “trophé”, que significa nutrição, relativo à nutrição dos
tecidos.
§ Erhart, Eros Abrantes. Neuroanatomia..
São Paulo: Ateneu, 01, 1974.
§ Georg Simmel (1858 – 1918): sociólogo
alemão, desenvolveu o que ficou conhecido como microssociologia.
§ Qi: é um termo associado de um modo
bem amplo ao conceito ocidental de energia, encontrada em todos os seres vivos,
interagindo entre si, modificando-se mutuamente. Esse mesmo som representa em
chinês a energia dos alimentos (o vapor que sai do arroz ao cozinharmos), do ar
e a energia pré-natal.
§ “Forçaessência”: palavra
criada por Bangse para expressar a substância do vigor, o ser do poder, a
necessidade da energia.
§ No sentido real da palavra, do latim
“promulgare”, vulgarizar, propagar, encontrar-se em tudo.
§ “Ditadurindividualismo”: palavra
criada por Bangse para expressar “o poder para si e o desrespeito que suprime a
liberdade do outro”. Os direitos do
indivíduo prevalecem sobre os da sociedade. É uma suposta liberdade individual em
que vale o interesse de cada um em detrimento do outro.
§ Direção, coordenação, funcionários e
o próprio espaço público da unidade escolar.
§ Harrison, G. A. Biologia Humana:
introdução à evolução, variação e crescimento humanos. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1971, p. 34.
§ Aquele que desejar aprofundar-se nas
funções psíquicas poderá estudar Jung.
§ Seus experimentos com sonhos periódicos e visões com
notáveis características mitólogicas e religiosas mudaram os rumos da
psicologia. Seu principal interesse eram os mitos, os sonhos e a psicologia da
religião.
§ Para Bangse, o “sentimento emocional”
é o ato de sentir, a sensibilidade puramente abstrata da realidade imediata,
concreta do consciente. Para ele, isso significa o instinto, atuando nas
condições humanas, influenciando na personificação momentânea do ato em si,
operada por um modo de ser exercido pelo poder do Estado.
§http://osamigosdopresidentelula.blogspot.com/2006/10/clima-de-vitória-domina-cerimônia..
§ Revista Carta Capital,
de 21/09/2005, ano XII, número 360, p. 28-33.
§ Os ataques violentos do PCC contra
civis e militares teve inicio em 12 de maio de 2006. Os principais alvos foram
os departamentos da polícia, o corpo de bombeiro, as agências bancárias; foram
utilizadas bombas caseiras, granadas e metralhadoras.
§ Mensalão: nome popularizado do
escândalo do esquema de votos de parlamentares do Congresso Nacional do Brasil
em 2005.
§ Nietzsche, Friedrich Wilhelm (1844 –
1900). Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro/Friedrich
Nietzsche. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
§ Hannah Arendt (1906 – 1975) foi uma
teórica política alemã considerada filósofa, apesar de ter
recusado essa designação.
§ O Muro de Berlim foi uma realidade e
um símbolo da luta do “povo” da República Federal da Alemanha, o qual
reunificou a Alemanha Oriental com a Ocidental em 9 de novembro de 1989. Em
nome da “liberdade”, muitos ali morreram, outros ficaram feridos e ou
aprisionados.
§ Platão 427 – 347 a..C.: filósofo
grego nascido em Atenas, teve como mestre Sócrates, do qual foi grande admirador.
§ Zaratustra: do livro de Niezsche Assim
falou Zaratustra, é uma narrativa em que centenas de máximas e
aforismos paradoxais circulam através de suas palavras profundas e poéticas, as
quais apontam contra a doutrina filosófica vigente. Zaratustra é um
anti-Cristo, anti-Buda, antiprofeta e antimístico, que tenta colocar em xeque a
ética através dos valores morais. Inverso dos valores, destruidor de ídolos,
divulgador da “morte de Deus”, Zaratustra consolida a falência do Absoluto de
Hegel, da Vontade de Schopenhauer, etc.
§ Bangse diz “desigualdade globalizada”
referindo-se ao saber, às oportunidades, aos desejos construídos culturalmente
e à felicidade desigual construída na alma.
§ Há mais pessoas enfermas por excesso
de alimentação do que por falta. A comida em excesso causa problemas de
obesidade, artrose, hipertensão, diabetes, etc.
§ Corpos materiais: meteoros, luas,
cometas, nebulosas e bilhões e bilhões de estrelas agrupadas num mais perfeito e absoluto equilíbrio, pela
geometria de seus campos de gravitação em maciços, nuvens, galáxias e sistemas
supergaláticos.
§ O astrônomo Edwin Hubble estudou do
observatório de Monte Wilson, com todo o cuidado, as áreas típicas do céu e
calculou a quantidade de matéria nessas áreas.
§ William Shakespeare (1564 -1616): dramaturgo
e poeta inglês.
§ José Ferrater Mora: autor do
dicionário de filosofia que leva seu nome.
§ Como citado anteriormente, pesquisar
em Jung.
§ Ler Wilhelm Reich (1897 – 1957): psiquiatra e psicanalista austro-húngaro
(atualmete Ucrânia), autor da obra Escutas Zé Ninguém.
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