terça-feira, dezembro 08, 2009

Disciplina: Fundamentos da Educação Especial

Educação Especial: Inclusão

A Inclusão como uma Força para a Renovação da Escola

A recuperação do sentido de nosso ofício de mestre não passará por desprezar a função de ensinar, mas reinterpretá-la na tradição mais secular, no ofício de ensinar a ser humanos. Podemos aprender a ler, escrever sozinhos, podemos aprender geografia e a contar sozinhos, porém não aprendemos a ser humanos sem a relação e o convívio com outros humanos que tenham aprendido essa difícil tarefa. Que nos ensinem essas artes, que se proponham e planejem didaticamente essas artes. Que sejam pedagogos, mestres desse humano ofício. (Arroyo, 2000, p. 54)


Visão Geral Histórica das Leis da Educação Inclusiva

• 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos
• "Todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos...(Art. 1°.), ...sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação" (Art. 2°.).
• Em seu Artigo 7°., proclama que "todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei...".


Visão Geral Histórica

• No Artigo 26°, proclama, no item 1, que "toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado..";
• No item 2, estabelece que "educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos..."

• O Artigo 27° proclama, no item 1, que "toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de usufruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam".
• De maneira geral, esta Declaração assegura às pessoas com deficiência os mesmos direitos à liberdade, a uma vida digna, à educação fundamental, ao desenvolvimento pessoal e social e à livre participação na vida da comunidade.


1990 – Declaração de Jomtien (Conferência Mundial sobre Educação para todos – Tailândia)
• Os países relembram que "a educação é um direito fundamental de todos, mulheres e homens, de todas as idades, no mundo inteiro".
• Declararam, também, entender que a educação é de fundamental importância para o desenvolvimento das pessoas e das sociedades, sendo um elemento que "pode contribuir para conquistar um mundo mais seguro, mais sadio, mais próspero e ambientalmente mais puro, e que, ao mesmo tempo, favoreça o progresso social, econômico e cultural, a tolerância e a cooperação internacional".

Declaração de Jomtien

• Tendo isso em vista, ao assinar a Declaração de Jomtien, o Brasil assumiu, perante a comunidade internacional, o compromisso de erradicar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental no país.
• Para cumprir com este compromisso, o Brasil tem criado instrumentos norteadores para a ação educacional e documentos legais para apoiar a construção de sistemas educacionais inclusivos, nas diferentes esferas públicas: municipal, estadual e federal.


1994 – Declaração de Salamanca (Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais – Espanha)

• Nela, os países signatários, dos quais o Brasil faz parte, declararam:
• Todas as crianças, de ambos os sexos, têm direito fundamental à educação e que a elas deve ser dada a oportunidade de obter e manter um nível aceitável de conhecimentos;
• Cada criança tem características, interesses, capacidades e necessidades de aprendizagem que lhe são próprios;
• Os sistemas educativos devem ser projetados e os programas aplicados de modo que tenham em vista toda a gama dessas diferentes características e necessidades;
• As pessoas com necessidades educacionais especiais devem ter acesso às escolas comuns, que deverão integrá-las numa pedagogia centralizada na criança, capaz de atender a essas necessidades;

Declaração de Salamanca

• As escolas comuns, com essa orientação integradora, representam o meio mais eficaz de combater atitudes discriminatórias, de criar comunidades acolhedoras, construir uma sociedade integradora e dar educação para todos;
• A Declaração se dirige a todos os governos, incitando-os a:
• Dar a mais alta prioridade política e orçamentária à melhoria de seus sistemas educativos, para que possam abranger todas as crianças, independentemente de suas diferenças ou dificuldades individuais;
• Adotar, com força de lei ou como política, o princípio da educação integrada, que permita a matrícula de todas as crianças em escolas comuns, a menos que haja razões convincentes para o contrário;
• Criar mecanismos descentralizados e participativos, de planejamento, supervisão e avaliação do ensino de crianças e adultos com necessidades educacionais especiais;
• Promover e facilitar a participação de pais, comunidades e organizações de pessoas com deficiência, no planejamento e no processo de tomada de decisões, para atender a alunos e alunas com necessidades educacionais especiais;
• Assegurar que, num contexto de mudança sistemática, os programas de formação do professorado, tanto inicial como contínua, estejam voltados para atender às necessidades educacionais especiais, nas escolas integradoras.

Declaração de Salamanca

• A Assembléia Geral das Nações Unidas sobre a Criança, analisou a situação mundial da criança e estabeleceu metas a serem alcançadas.
• Entendendo que a educação é um direito humano e um fator fundamental para reduzir a pobreza e o trabalho infantil e promover a democracia, a paz, a tolerância e o desenvolvimento, deu alta prioridade à tarefa de garantir que, até o ano de 2015, todas as crianças tenham acesso a um ensino primário de boa qualidade, gratuito e obrigatório e que terminem seus estudos.
• Ao assinar esta Declaração, o Brasil comprometeu-se com o alcance dos objetivos propostos, que visam a transformação dos sistemas de educação em sistemas educacionais inclusivos.


1999 – Declaração da Guatemala (Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência)

• Os Estados Partes reafirmaram que "as pessoas portadoras de deficiência têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais que outras pessoas e que estes direitos, inclusive o de não ser submetido a discriminação com base na deficiência, emanam da dignidade e da igualdade que são inerentes a todo ser humano".
• No seu artigo I, a Convenção define que o termo deficiência "significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária causada ou agravada pelo ambiente econômico e social".



Declaração da Guatemala

• Para os efeitos desta Convenção, o termo discriminação contra as pessoas com deficiência "significa toda a diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência (...) que tenham efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais".
• Também define que não constitui discriminação "a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado Parte para promover a integração social ou desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesmo o direito a igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação".

O Brasil e as Leis da Educação Inclusiva

• 1988 – Constituição Federal
• 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente
• 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
• 1999 – Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
• 2001 - Plano Nacional de Educação
• 2001 – Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica

CENSO 2000

14,5% da população brasileira, isto significa que são 24,5 milhões de pessoas
Das deficiências declaradas:
48,1% deficiência visual
22,9% motora
16,7% auditiva
8,3% mental permanente
4,1% deficiência física

Inclusão: Benefício para todos

ESTUDANTES SEM DEFICIÊNCIAS:
• Têm acesso a uma gama bem mais ampla de papéis sociais
• Perdem o medo e o preconceito em relação ao diferente
• Desenvolvem a cooperação e a paciência
• Adquirem grande senso de responsabilidade
• Melhoram o rendimento escolar
• São melhor preparados para avida adulta, porque desde cedo assimilam que as pessoas, as famílias e os espaços sociais não são homogêneos e que as diferenças são enriquecedotas para o ser humano


Inclusão: Benefício para todos

ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIAS:
• Aprendem a gostar da diversidade
• Adquirem experiência direta com a variedade das capacidades humanas
• Demonstram crescente responsabilidade e melhor aprendizagem através do trabalho em grupo, com outros deficientes ou não
• Ficam melhor preparados para a vida adulta em sociedade diversificada: entendem que são difarentes, mas não inferiores


Dez Elementos Críticos para a Criação de Comunidades de Ensino Inclusivo Eficaz

1. Desenvolver uma filosofia comum e um plano estratégico
2. Proporcionar uma liderança forte
3. Promover culturas no âmbito da escola e da turma que acolham, apreciem e acomodem a diversidade
4. Desenvolver Redes de Apoio
5. Usar processos deliberativos para garantir a responsabilidade
6. Desenvolver uma assistência técnica, organizada e contínua


7. Manter a flexibilidade
8. Examinar e adotar abordagens de ensino efetivas
9. Comemorar os sucessos e aprender com os desafios
10. Estar a par do processo de mudança, mas não permitir
que ele o paralise


A celebração das diferenças, o direito de pertencer, a valorização da diversidade humana, a solidariedade humanitária, a cidadania com qualidade de vida.
(SASSAKI,1997)

quinta-feira, junho 18, 2009

GESTÃO ESCOLAR: CURRÍCULOS E PROGRAMAS


Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o ensino fundamental
Carlos Roberto Jamil CuryFaculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais
Introdução
Mais uma vez a comunidade educacional se sente provocada a se pronunciar sobre uma discussão que preocupou sobremaneira os constituintes de 1988: como dar encaminhamento ao dispositivo constitucional expresso no art. 210 da Constituição Federal? E, novamente, torna-se importante não ignorar que esse assunto sempre foi polêmico, seja pelo seu caráter de componente de uma política educacional, seja pela importância do currículo no próprio exercício do ato pedagógico no interior da "estrutura e funcionamento" da educação escolar brasileira.
A iniciativa do MEC em dar continuidade à discussão desse assunto por meio dos denominados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) deve nos remeter a algumas reflexões a propósito de seu significado, sua oportunidade e processualística, sem nos esquecermos de outros momentos históricos nos quais a mesma questão se pôs. E, se tais premissas forem procedentes, tirar algumas conclusões de caráter provisório tendo em vista a possibilidade de sua efetivação.
Parâmetros Curriculares Nacionais, currículos mínimos, currículos básicos, currículos unificados, conteúdos mínimos, diretrizes comuns nacionais ou qualquer outro nome que se Ihes atribua são dimensões da política educacional que sempre estiveram às voltas com a questão federativa e com a questão da participação. Ambas as questões passam pelo sentido maior da democracia.
Evidentemente o nome atribuído pode ter ou não uma ligação mais estreita com uma concepção de fundo que subjaz a qualquer política educacional. Diretrizes podem ser linhas gerais reguladoras e currículos únicos podem,significar mais do que uma listagem mínima e geral de disciplinas obrigatórias para todo o país. Por outro lado, o termo "parâmetro" pode dar, até mesmo pela sua origem etimológica, uma idéia de uma "medida" ou de uma "linha" geométrica, constante e invariável.
De qualquer maneira, sempre fica a pergunta sobre de que tamanho deve ser esse "mínimo" afim de que a criatividade também possa transparecer nas unidades federadas e nas próprias unidades escolares. E, não menos importante, qual o sujeito privilegiado do "serão fixados conteúdos mínimos...", evitando-se tanto a burocratização verticalista quanto um democratismo pulverizado? [Anísio Teixeira, já em 1952, criticando o parecer centraliza dor de G. Capanema ante o projeto de Lei de Diretrizes e Bases enviado pelo ministro Clemente Mariani, afirmou que os educadores não podem ser transformados em "rígidos intérpretes de leis e regulamentos uniformes, [...] em executores rígidos de programas oficiais, e os livros didáticos em manuais 'oficializados' e conformes, linearmente com os pontos dos 'programas'" (Teixeira, 1952, p. 85)]
A questão federativa, conquanto não limitada só à educação escolar, sempre esteve na primeira linha das discussões quer no Brasil Império, quer no Brasil República. Ela já se impunha ao país antes mesmo da transição da cultura centralizada e centralista do Império para a descentralização federada da República.
Montante de verbas, distribuição de rendas, captação de impostos se cruzam com a divisão de responsabilidades, diversificação de competências e atribuições segundo parâmetros mais unionistas ou mais descentralizadores e, neste último caso, com propostas até mesmo confederalistas. E o justo equilíbrio entre esses extremos, no caso de uma nação, é o federalismo democrático, sempre ansiado como o melhor. [Um exemplo para se ver a magnitude dessas discussões pode ser encontrado no livro de Lêda Boechat Rodrigues (1968), intitulado História do Supremo Tribunal Federal, 1890-1910, a defesa do federalismo, no qual a autora apresenta os problemas ligados à questão federativa através de sentenças e processos do STF.]
Verbas, competências e atribuições, freqüentemente em clima de disputa no interior de regimes democráticos e federados, são dirigidas para determinados fins mais amplos, fins estes que podem ser mais consensuais. Entre eles podem-se citar as funções clássicas do Estado nacional como guardião da soberania, da moeda, da segurança e da coesão social. Pode-se então dizer que a coesão, uma função permanente dos Estados nacionais, se impõe através de vários caminhos. A educação escolar é um deles e aí ocupa lugar destacado.
Ora, se as instituições de ensino sempre foram consideradas relevantes no sentido da coesão é porque elas socializam, culturalizam e instilam comportamentos e valores. Elas ensinam isto é, deixam sinais. Mas, enquanto tais, elas só se consubstanciam quando se aproximam do ato pedagógico. Este, por sua vez, enquanto síntese do aprender-ensinar,é mediado por currículos manifestos ou ocultos, sobretudo no interior de redes de ensino. (Aliás, isto já está posto na origem do termo currículo seja como dimensão estática (cadastro, reunião de dados), seja como dimensão dinâmica (curso, movimento de reunião).
Nesse sentido, currículos nacionais, mínimos curriculares, diretrizes gerais têm muito a ver com a questão federativa, pois neles estão presentes a idéia e a prática de conteúdos gerais válidos para toda uma nação. Mas sua operacionalização enfrenta uma dupla problemática: se há necessidade de constrangimentos legais para esses mínimos e, seja pela negativa, seja pela afirmativa, qual o papel das unidades federadas. As perguntas clássicas sobre os justos limites dos entes juridicamente autônomos no jogo União x unidades federadas se expressam também no âmbito de currículos mínimos para todos os cidadãos em qualquer estado ou município. Assim, pode-se: interrogar: invade-se o território da autonomia dos estados quando a União impõe uma lista mínima de disciplinas? E o que dizer quando ela avança no sentido de um detalhamento destas? Esse detalhamento é o que reza o art. 210 da Constituição? Basta uma listagem mínima de disciplinas para que o objetivo da coesão nacional se:já alcançado? Trata-se de uma peculiaridade dos Conselhos Nacionais no sentido de sua explicitação? Qual a tarefa dos Conselhos Estaduais (ou de quem quer que lhe faça as vezes)? Qual é o papel dos pesquisadores e estudiosos nesse caso? (Sobre esse assunto deve-se consultar os Cadernos ANPEd Nova Fase, n° 2, 1989, todo dedicado a esse assunto.)
Por outro lado, quem exerce a docência é quem "sente" o peso dessa tarefa, e nesse "sentir" o professor "sabe" um caminho que nem sempre chega a quem entende que "entende" do assunto, mas nem sempre "sente". É possível uma proposta curricular, em qualquer nível administrativo, em que a legitimidade da proposta não passe pela subjetividade dos profissionais da educação?
Desafio permanente para qualquer democracia é a natureza e o grau de participação que deve pautar a relação entre "dirigentes e dirigidos". Desafio permanente para todos é o grau de flexibilidade dos dispositivos normativos para que não impeçam a crítica e a criatividade.
Nesse sentido, deve afirmar-se que, em uma democracia, o produto almejado deve estar contido no próprio de produção de uma norma ou mesmo das normas que visem regulamentar um princípio geral. Nunca é demais recordar as advertências de Bobbio: "a democracia tem a demanda fácil e a resposta difícil; a autocracia, ao contrário, está em condições de tornar a demanda mais difícil e dispõe de maior facilidade para dar respostas" (1986, p. 36). Por outro lado, alerta o mesmo autor: "Mas como pode o governo responder se as demandas que provêm dê uma sociedade livre e emancipada são sempre mais numerosas, sempre mais urgentes, sempre mais onerosas?" (idem, p. 36).
Um princípio de entendimento a algumas dessas questões pode ser buscado a partir dos modos pelos quais se respondeu ao tema aqui proposto delimitando-o no plano do ensino fundamental. Assim, uma breve retrospectiva histórica da polêmica currículo x federação pode ser útil.
Memória histórica
Pode-se dizer que a idéia de um currículo nacional se cruza com a evolução a educação, sobretudo a chamada educação escolar fundamental, entendida como direito do cidadão e dever do Estado. Embora vários cruzamentos possam ser estabelecidos, pode-se dizer que um currículo nacional se cruza com uma função social do Estado, que é a de atender a um direito do cidadão que busca na educação escolar uma via de cidadania compartilhada com seus concidadãos.
E o acesso a essa dupla referência (direito x dever) é tardio enquanto inscrição e escritura em Constituições brasileiras. O que não quer dizer que - a despeito da inexistência desses princípios em algumas Constituições - não houvesse discussões sobre currículos.
O Império inscreve a gratuidade das escolas primárias pelo art. 179, n° 32, mas sem reconhecê-la como direito. Até 1834, o Império tem a responsabilidade de manter tais escolas como oferta gratuita aos que viessem procurá-las. O Ato Adicional de 1834 introduz não só a divisão de competências entre "os poderes gerais" e as províncias, como também deixa na ambigüidade se tal responsabilidade deveria ser compartilhada ou privativa das províncias. (Cf. Ato Adicional, art. 10, par. 1°.)
Essa ambigüidade sempre acabou permeando as discussões sobre a dinâmica centralização x descentralização, mesmo antes de nossa República proclamada se dizer Federativa.
É verdade que, grosso modo, pode-se dizer que coube sempre às províncias, e depois aos estados, a tarefa do ensino fundamental e sempre coube aos "poderes gerais" (depois União) o controle do ensino superior e em boa parte do ensino secundário (em especial na capital do Império/República).
Mas até onde podem ir as "diretrizes"? E como se pode defini-las? Como discriminar especificamente as várias competências e responsabilidades? Pode-se dizer que se criou um entendimento geral que a União tem, em relação ao ensino primário, apenas uma função supletiva. Já em relação ao ensino médio e sobretudo em relação ao ensino superior seu papel seria bem mais diretivo e até mesmo interferidor. (Cf. Constituição Federal de 1891, art. 35, par. 2°, 3°,4°.)
E será no interior destas duas dinâmicas, a educação como direito e dever e a educação enquanto constante de uma federação republicana (após o Império), que o tema dos currículos será sempre reposto enquanto instrumento de coesão nacional. Certamente, como se verá, essa questão tem história junto à história das políticas educacionais no Brasil.
A Constituinte de 1823, antes de sua dissolução pelo imperador, já se debatia com essa questão e não conseguiu efetivar a proposta de um tractatus de educação válido para toda a juventude brasileira, sob a forma de um compêndio a ser levado a todos os rincões do país (Chizzotti, 1996).
E, ao que parece, na medida de suas possibilidades e vontade política, as províncias não deixaram de considerar as disciplinas listadas pela primeira lei de ensino do Brasil, aquela que traduzia a regulamentação do artigo da gratuidade do ensino primário e que foi publicada a 15 de outubro de 1826. Nela se prescrevia a oferta obrigatória de língua portuguesa, aritmética, história do Brasil e religião católica.
Entretanto, nada havia de imperativo em relação ao detalhamento dessa lista como ementas, guias ou programas previamente definidos. Nesse sentido, parece ter ido se firmando a tradição de descentralização (na República transformada em princípio da autonomia) das províncias e, posteriormente, dos estados em relação a esse nível de ensino.
A partir de 1837, com a criação do Colégio Pedro II, as disciplinas do ensino secundário passaram a contar com um centro de referência. As instituições de ensino das províncias, oficiais ou não, conquanto não imperativamente, miravam-se no espelho dos currículos e até mesmo dos livros didáticos adotados pelo Colégio Pedro II. E a existência de exames de admissão para o ingresso no primeiro ciclo do ensino secundário (ginásio) criava uma situação em que aqueles exames condicionavam os conteúdos dos estudos anteriores.
Quanto à organicidade institucional do ensino primário, não se pode negar que ela foi bem mais lenta que a relativa ao ensino médio e superior. Boa parte dele possuía uma dimensão doméstica, nem sempre se realizando em instituições escolares. (A própria Lei de Diretrizes e Bases de 1961 diz textualmente no seu art. 2°: "a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola" (grifos nossos). Também a proposta de LDB em tramitação fala em "alternativa satisfatória" ao dever de "matricular no ensino obrigatório".)
Aliás, não se ignora que católicos e positivistas, embora com fundamentações diferenciadas, tinham preferência pela educação primária dada na família, com ênfase no papel feminino de educadora a ser cumprido pela mulher.
A proclamação da República não altera significativamente esse quadro. Aliás, no que se refere à dinâmica direito x dever, a República não inscreveu em sua Constituição de 1891 sequer a afirmação da gratuidade do ensino primário. Tal possibilidade poderia vir a ser inscrita nas Constituições Estaduais. Mas, por outro lado, a Lei Maior determinou a laicidade nos estabelecimentos oficiais de qualquer nível, inclusive os sob responsabilidade dos estados e municípios. (Cf. CF/1891, art. 72, par. 6°.) Uma disciplina até então vigente no currículo geral das escolas do Império - a de doutrina religiosa católica -foi cortada dos currículos dos estabelecimentos oficiais da República.
Excetuada, porém, a presença paradigmática do Colégio Pedro II, as competências relativas ao ensino primário (e em certa medida relativas ao secundário) ficaram com os estados ou municípios, os quais poderiam exercitar sua autonomia no âmbito dos currículos.
E não deixa de ser notável uma certa oscilação entre centralização e descentralização no âmbito das reformas educacionais na assim denominada República Velha. (Cf.Marquesjr., 1967, e Tannuri, 1981.)
E a já conhecida dispersividade regional em relação a um currículo básico não passou desapercebida dos movimentos sustentadores de uma democratização da rede pública escolar brasileira. (Cf. Nagle, 1974.)
E tal foi o vigor desses movimentos que a Revisão Constitucional de 1925-1926 tratou do tema com bastante abundância, em especial através do ângulo da formação de um "caráter nacional". (Cf. Cury, 1992.) A educação escolar mediaria vínculos nacionais através dos quais garantir-se-ia uma dimensão da coesão nacional. Tal mediação ganharia ímpeto pelo abalo trazido pelos movimentos sociais proletários e pelos movimentos políticos internos, com destaque para a Coluna Prestes.
O que não quer dizer que só essa Revisão houvesse buscado o princípio de uma diretriz geral e nacional para a educação. Sucessivos projetos de reforma do ensino público encaminhados por parlamentares, durante a chamada República Velha, não lograram êxito em seus propósitos. (Cf. Moacyr, 1944.) Além disso, não se pode deixar de lembrar os esforços pelos quais instituições de ensino estaduais, oficiais ou livres, ansiavam pelo mérito de serem equiparadas ao Colégio Pedro II.
A Revolução de 30 haveria de trazer algumas alterações significativas no quadro até então existente.
O ano de 1931 traz, pelo menos, três importantes mudanças: a introdução do ensino religioso nas escolas oficiais, a oficialização dos estabelecimentos do ensino secundário, via aceitação do regimento e currículos do Pedro II, e a criação do Conselho Nacional de Educação, órgão consultivo e opinativo do Ministério da Educação e Saúde Pública, de cujas atribuições fazia parte "firmar diretrizes gerais do ensino primário, secundário e superior", de tal modo que nelas os "interesses do país" se sobrepujassem a qualquer outro.
O Manifesto dos pioneiros da educação nova, além da defesa da gratuidade, obrigatoriedade e laicidade da escola pública como dever do Estado, afirmará a importância de um processo de homogeneização básica, a partir da escola primária, visando " a identidade da consciência nacional". Homogeneização básica defendida como alternativa criadora à uniformidade rejeitada, aliás bastante distante dos métodos ativos defendidos pelo escolanovismo.
A Constituição de 1934, ao inscrever a educação como direito do cidadão e obrigação dos poderes públicos, tornou-a gratuita e obrigatória no primário, responsabilizou os estados em termos de sua efetivação, impôs percentuais vinculados para o bom êxito dessa efetivação (Cf. CF/1934, capítulo sobre educação.) e firmou a existência de Conselhos Estaduais ao lado do Conselho Nacional de educação a quem competiria elaborar o Plano Nacional de Educação. (Cf. idem, art. 152.) Ela introduziu também a "competência privativa " da União no estabelecimento de diretrizes da educação nacional e na fixação do Plano Nacional de Educação, (Cf. idem, art. 5, XIV.) sem deixar de reconhecer a competência concorrente da União e estados quanto ao objetivo de difundir em todos os graus a instrução pública. (Cf. idem, art. 10, VI.)
De acordo com esse espírito que congregava a tarefa de elaborar o Plano Nacional e de fazer cumprir a Constituição, o então governo eleito de Vargas reorganiza o Conselho Nacional de Educação pela lei n° 174 de 6 de janeiro de 1936 e lhe impõe o regimento interno. Por ambos os instrumentos fica claro que a dimensão interferidora da União ante o ensino primário se esgota substancialmente na guarda da Constituição e na elaboração do Plano Nacional de Educação (para cuja elaboração criar-se-ia uma comissão específica voltada para o ensino primário). Coube também à União a função supletiva de estimulação, promoção de conferências e apoio técnico ao ensino primário. Embora houvesse um representante do ensino primário e normal e uma comissão de ensino primário e secundário na composição do Conselho Nacional, de fato esse parece ter se voltado mais para as questões do ensino superior. (Esse Plano não chegou a se efetivar pois sua elaboração final, pelo projeto de lei enviado ao Congresso, não teve seqüência por causa do golpe de Estado de 1937.)
Mais especificamente em relação à questão curricular, a Constituição impõe como constante dos currículos oficiais o ensino religioso como disciplina de oferta obrigatória e matrícula facultativa. Tal dispositivo atravessará todas as Constituições Federais após 1934. (Cf. Cury, 1995, e Horta, 1995.)
Se para o ensino secundário vai se firmando, cada vez mais, a presença paradigmática do currículo do Colégio Pedro ll, a instrução primária, vista desse ângulo, confirma-se como competência dos estados. (Nunca é demais insistir na necessidade de maiores investigações quanto aos currículos e programas nas unidades federadas.)
Essa orientação federalista, tanto descentralizadora quanto garantidora de aspectos nacionais, firmada no princípio da educação como direito do indivíduo, impressa pela Constituição de 1934, foi rompida pela outorga da Constituição de 1937. Esta voltava a centralizar quase tudo no âmbito do Executivo federal. Não reconhecendo a educação como direito de todos, mas como dever das famílias, cortando a vinculação obrigatória, previa como competência privativa da União a fixação das "diretrizes da educação nacional". Mesmo quando o Estado Novo procurou discriminar atribuições de estados e municípios pelo decreto-lei de 8 de abril de 1939, impunha claros limites à atuação destes. No âmbito da educação, os decretos-lei estaduais só teriam vigência após aprovação do chefe de Estado, aí compreendida a regulamentação do ensino primário.
A criação efetiva do Instituto Nacional do Livro, sob a direção de Gustavo Capanema, imprimiria nos currículos uma espécie de ideologia oficial nos textos, já que os livros, para efeito de publicação e de divulgação, deveriam ter autorização do Departamento de Imprensa e propaganda (DIP).
O decreto-lei n° 93 cria o Instituto Nacional do Livro em 21 de dezembro de 1937. 0 DIP censurava os livros em geral, embora o livro didático ficasse a cargo do ministro da Educação. Já o decreto-lei na 1006/38 estabelece que, sem a autorização do Ministério, "os livros didáticos não poderão ser adota dos no ensino das escolas pré-primárias, primárias, normais, profissionais e secundárias em toda a República" (Pereira, 1995, p.148). Este último decreto-lei cria também a Comissão Nacional do Livro Didático, à qual competiria autorizar ou não uma determinada obra.
A Lei Orgânica do Ensino Primário (decreto-lei no 8529/46), já assinada por José Linhares, impunha sete disciplinas válidas e obrigatórias para todo o território nacional no ensino primário elementar: leitura e escrita, iniciação matemática, geografia e história do Brasil, conhecimentos gerais, desenho e trabalhos manuais, canto orfeônico e educação física. ( Cf. art. 7 dessa lei orgânica.) Isso sem, contar o ensino religioso.
Já o curso primário complementar, além das supracitadas, deveria incorporar geometria, elementos de história da América, ciências naturais e higiene, elementos de economia regional. As meninas ainda cabiam economia doméstica e puericultura. (Cf. idem, art. 8. Se questões de culto povoavam as discussões sobre currículos, agora, ainda que de modo discriminatório, aparecem questões ligadas à diferenciação sexual.)
O curso primário supletivo, voltado para jovens e adultos, deveria conter -além de leitura, linguagem oral/escrita, aritmética e geometria, geografia e história do Brasil- ciências naturais, higiene, noções de direito (do trabalho, civil e militar). As alunas deveriam cursar economia doméstica e puericultura (art. 9).
Mais do que isso, a Lei, através do art. 10, dá orientações gerais para o ensino primário fundamental (elementar + complementar) no sentido de uma didática próxima da escolanovista e no art. 12 impõe o seguinte: "O ensino primário obedecerá a programas mínimos e a diretrizes essenciais, fundamentados em estudos de caráter objetivo, que realizem os técnicos do Ministério da Educação e Saúde, com a cooperação dos estados".
Programas regionais teriam o caráter de complementar a programação geral fixada pelo Ministério para todo o país.
O decreto-lei ainda regula minuciosamente os "sistemas de ensino primário" e os enquadra em uma espécie de estrutura e funcionamento.
Embora não viessem à luz durante a ditadura, as Leis Orgânicas relativas ao ensino primário, normal e agrícola, preparadas durante o regime varguista através de comissões nacionais, tiveram continuidade sob o Estado de Direito da Constituição de 1946. Tal fenômeno se deu devido ao longo processo de tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1961. Com isso houve um relativo choque entre a orientação estadonovista, centralizadora e autoritária, e aquela promanada da Constituição liberal e descentralizadora de 1946.
Com efeito, a Constituição de 1946, ao repor o Estado de Direito, traz consigo também a dimensão liberal-descentralizadora e reinsere a educação como direito do indivíduo e obrigação do poder público. Também são repostos os preceitos de 1934 que a ditadura havia cortado. A definição da Lei de Diretrizes e Bases permanece como competência privativa da união. E o choque entre ambas orientações supramencionadas será eliminado pelos termos de compromisso trazidos com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961.
Esta, excetuadas as disciplinas obrigatórias impostas a todos os sistemas de ensino, como educação física e ensino religioso, deixava aos estados ampla liberdade na construção de conteúdos curriculares. Isso quer dizer que determinadas disciplinas constavam nacionalmente dos currículos, mas seus conteúdos não tinham definições específicas por parte da União. (No projeto de LDB proposto por Clemente Mariani em 1946, pode-se ler no art. 66 que seria competência do Estado aperfeiçoar e baratear o livro didático. Além do que os livros didáticos, para serem divulgados nas escolas, deveriam ser registrados no Ministério e quando "impróprios aos fins educativos" seriam proibidos, ouvido o Conselho Nacional de Educação.)
A lei 4024/61 não fixa um currículo mínimo obrigatório para o ensino primário, mas o art. 25 assinala que o fim desse nível de ensino é o "desenvolvimento do raciocínio e das atividades de expressão da criança e a sua integração no meio físico e social". [O mesmo Mariani defendia "a unicidade do sistema educacional cujas variedades estaduais obedecerão ao princípio de equivalência pedagógica em substituição ao falso princípio da uniformidade pedagógica" (Mariani, s/d, p.328).]
Ora, o Conselho Federal de Educação, no parecer na 121/63, ao discutir os exames de admissão, reconhece quatro grandes departamentos do ensino primário: língua pátria, aritmética, ciências naturais e ciências sociais. E o mesmo parecer se socorre do PABAEE/MG para um detalhamento da consistência conteudística dessas quatro áreas. E reconhece não só a autonomia dos estados a esse respeito, como também a existência de escolas com atividades "assistemáticas" de ação educativa e de instrução no lar.
O que é novo na lei 4.024/61 é a permissão dada pelo art. 104 de se constituírem escolas experimentais com currículos próprios, o que faz juz ao art. 12 da mesma, onde se reconhece a correlação "sistemas de ensino" e "flexibilidade dos currículos".
O CFE, instalado em 12 de fevereiro de 1962, prevê uma comissão de ensino primário e médio; quanto ao primário, a Portaria na 60 de 21 de fevereiro de 1962 prevê a competência do Conselho na "análise dos efeitos da ação supletiva" da União em face dessa modalidade de ensino.
O regime autoritário-militar de 1964 manteve pró-forma o funcionamento precário das Constituições e do Congresso. Ele procurou também deixar sua marca na educação escolar. Contudo, no que se refere ao regimento do CFE, trazido pelo decreto no 64.902 de 29 de julho de 1969, o art. 3,2, ao expressar a "competência do Plenário em interpretar a LDB", ressalvava a "competência dos sistemas estaduais de ensino, definida na Lei na 4.024 de 20 de dezembro de 1961".
Grande mudança, entretanto, será trazida pela lei 5.692/71 no que se refere ao ensino primário. Sob a nova denominação de "ensino de 1 o grau" ela compreenderá tanto o que antes era o ensino primário quanto o que era o 1° ciclo do ensino médio (ginásio).
O ensino de 1° grau passa, então, a ter oito anos obrigatórios. Já a organização didática de cada estabelecimento ficaria sob os cuidados do respectivo Conselho de Educação, desde que se respeitassem as "matérias" (Cf. Lei 5.692/71, art. 6, par. único, letra a.) do "núcleo comum, obrigatório em âmbito nacional" (art. 4), competência do Conselho Federal de Educação. E nelas dever-se-iam constar educação moral e cívica, educação física, educação artística, programas de saúde, língua nacional e ensino religioso.
Extenso e detalhado comentário sobre núcleo comum dos currículos nacionais será trazido pelo Parecer 853/71, logo após a publicação da Lei 5692/71. E em certo trecho do parecer lê-se claramente:
Por já virem tais atividades prescritas no art. 7º da lei, só consideraremos aqui na medida em que tenhamos de relacioná-las com os demais componentes do currículo. Associado a elas, o núcleo comum configura o conteúdo mínimo abaixo do qual se terá por incompleta qualquer formação de 1° e 2° graus, assim quanto aos conhecimentos em si mesmos como, sobretudo, do ponto de vista da unidade nacional de que a escola há de ser causa e efeito a um tempo. Daí a sua obrigatoriedade.
Já se vê que o Conselho Federal foi, como dantes o fora o Conselho Nacional, o órgão responsável pela tradução desses conteúdos mínimos para todo o conjunto do sistema escolar brasileiro. Nesse sentido, mesmo as alterações de nome ou de atribuições desse Conselho não determinaram a perda dessa responsabilidade. Assim, o regimento do CFE, de acordo com a portaria ministerial no. 691/81, define, no seu art. 2, XVIII, como sua competência "fixar as matérias do núcleo comum dos cursos de 1° e 2° graus, definindo-lhes os objetivos e amplitude, bem como o mínimo a ser exigido em cada habilitação profissional ou conjunto de habilitações afins" .
E na organização do CFE como colegiado se prevê uma Câmara de Ensino de 1° e 2° graus e uma Comissão Central de Currículos. (Eis aqui um campo pouco explorado nas pesquisas de pós-graduação em educação.)
Com isso foram se consubstanciando duas orientações relativamente recorrentes: a primeira, de certo modo já posta pelo Ato Adicional de 1834, a de que o ensino fundamental é competência dos estados e municípios e a de que o ensino superior tenha um maior controle por parte da União, ficando relativamente cinzentos os espaços de competências concorrentes e/ou comuns. A segunda é a de que o estabelecimento de diretrizes e bases para a educação nacional continua sendo competência privativa da União e sua tradução específica, no que se refere aos mínimos programáticos, seja elaborada através de um Conselho Nacional ou Federal de Educação.
Tais orientações, ainda que recheadas por novos dispositivos colocados pela Constituição Federal de 1988 quanto à gratuidade, gestão democrática, direito público subjetivo, municipalização e outros, foram nela reafirmadas, sem contudo se fazer referência à existência de um Conselho Nacional ou Federal (que só aparecerá nas propostas de LDB).
Entretanto, a Constituição determinara uma pequena reforma tributária que repassou fontes de recursos da União para os estados e municípios. Ficava suposto que, concomitantemente, se faria o transfert de competências, sobretudo no campo da saúde e educação. Além disso, o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional do deputado Octávio Elísio Alves de Brito, pelo seu caráter participativo, franqueara a discussão sobre a polêmica noção de "sistema nacional de educação". Ora, tal noção reporia a questão federativa, voltando-se ao confronto entre unionistas e descentralizadores.
A longevidade da tramitação do projeto de LDB, a mudança das condições internacionais no que se refere à correlação trabalho/emprego, a vontade da União em diminuir seus gastos, a necessidade de especificar a vinculação orçamentária e sobretudo a consciência da importância do ensino fundamental, de cuja situação lamentável o país mais uma vez se envergonha, obrigaram a que tanto parlamentares quanto Executivo tomassem iniciativas mais rápidas no enfrentamento da questão.
Por outro lado, a educação escolar foi definida (ainda que de. modo especificado em alguns aspectos e nem tanto em outros) competência privativa da União, competência concorrente entre União e estados e competência comum entre União, estados e municípios, segundo os art. 22, 23 e 24 respectivamente. Finalmente, o art. 30 supõe a ação supletiva da União e dos estados em relação à obrigação dos municípios em manter uma rede de ensino voltada para o pré-escolar e o fundamental.
Urgia, pois, o enfrentamento da questão, até porque o texto constitucional em seu art. 210 reza que "serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais" .
O tom imperativo não deixa dúvida. Não menos claro é o adjativo "mínimo". E, se "serão fixados", alguém deve ser o responsável. A tradição dessa matéria constata iniciativa da União através do Conselho Nacional (Federal) de Educação.
Nesse sentido torna-se ilustrativo citar o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ora em tramitação no Congresso. Diz ela em seu art. 10, inciso IV, que a União deve "estabelecer, em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e os seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum".
Outros artigos desse mesmo projeto de Lei, ainda que citá-Ios alongue o texto, são úteis para o entendimento da problemática.
Art. 24. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum a ser complementada pelos demais conteúdos curriculares especificados nesta Lei e, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
§ 1° Os currículos valorizarão as artes e a educação física, de forma a promover o desenvolvimento físico e cultural dos alunos.
§ 2° O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
§ 3° De acordo com as possibilidades da instituição de ensino deverá ser oferecida pelo menos uma língua estrangeira.
Art. 25. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes:
I. a difusão de valores fundamentais ao interes-
se social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;
II. consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento;
III. orientação para o trabalho.
Esses artigos da LDB em tramitação, em certa medida, alteram formulações dos projetos anteriores de LDB a respeito do mesmo assunto e que taxativamente continham maior presença da sociedade civil organizada em torno da educação.
Assim, o Plano Decenal de Educação para Todos (1993) deu uma redação mais participativa no âmbito desse convênio internacional assinado pelo Brasil. Esse texto reintroduz o MEC como proponente das diretrizes curriculares ao colocar a necessidade de "fixação dos conteúdos mínimos determinados pela Constituição" como uma de suas linhas de ação estratégica:
O MEC, com o concurso das representações educacionais e da sociedade, deverá propor e especificar os conteúdos nacionais capazes de pautar a quantidade de educação socialmente útil e de caráter universal a ser oferecida a todas as crianças, consideradas suas diferenças. Complementações curriculares serão propostas em cada sistema de ensino e escolas, respeitando a pluralidade cultural e as diversidades locais. Igualmente pesquisas serão desenvolvidas para fundamentar avanços no âmbito das competências sociais, visando enriquecer o processo curricular da escola (p. 45).
Em certa medida, esse texto do Plano Decenal faz eco à proposta de LDB, Projeto de Lei Complementar n° 101/93 do senador Cid Sabóia de carvalho, que diz em seu art. 23, VI, que cabe ao Conselho Nacional de Educação "fixar, após ouvir educadores e comunidades científicas das áreas envolvidas, diretrizes curriculares gerais, definindo uma base nacional de estudos para o ensino fundamental, médio e superior de educação".
Essa formulação resume o conteúdo mais explícito e detalhado sobre o assunto tal como expresso no artigo 23, VI. Caberia ao Conselho Nacional " fixar as diretrizes curriculares gerais, definindo uma base nacional de estudos para cada nível de ensino". Já o art. 34, além de reconhecer a competência do Estado e/ou municípios na plenificação do currículo, além de estimular a vida concreta dos estudantes como ponto de partida, diz no seu caput que "os currículos do ensino fundamental e médio abrangerão, obrigatoriamente, o estudo de língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil" .
Percebe-se, pois, que a iniciativa do Executivo federal em relação aos currículos, mais forte em tempos autoritários, mais aberta em tempos de Estado de Direito, é, via de regra, repassada ou delegada ao Conselho Nacional, aos respectivos Conselhos Estaduais e às próprias instituições escolares a fim de não ignorar as disparidades regionais, peculiaridades culturais e de respeitar. o pacto federativo. Essa abertura em tempos de Estado de Direito vai desde uma democracia diretamente participacionista no projeto de LDB de 28 de junho de 1990 até a proposta da LDB em tramitação atual, que, como foi visto, deixa essa responsabilidade sob competência do(s) Executivo(s).
O Executivo, que já perdera a iniciativa da LDB em 1988, não queria deixar passar essa parte Ia legislação sem interferir decisivamente na questão. Daí sua postura de maior apoio ao projeto nascido no Senado, especialmente no governo Collor e na gestão Fernando Henrique Cardoso.
Mas não se pode omitir que é imprescindível o reconhecimento da complexificação da sociedade brasileira dada pela forte presença de associações científicas e profissionais que se preocupam com a educação brasileira, aí compreendidos os conteúdos curriculares.
Finalmente, deve-se registrar a (re)criação do Conselho Nacional de Educação através da Lei 9.131/95. A lei de criação do Conselho busca conciliar a ponderabilidade entre sociedade política e sociedade civil, com inclinação para o Executivo. Veja-se a esse respeito o art. 6 da lei n° 9.131/95 e seu parágrafo único:
O Ministério da Educação e do Desporto exerce as atribuições do poder público federal em matéria de educação, cabendo-lhe formular e avaliar a política nacional de educação, zelar pela qualidade do ensino e velar pelo cumprimento das leis que o regem.
§ 1° No desempenho de suas funções, o Ministério da Educação e do Desporto contará com a colaboração do Conselho Nacional de Educação e das Câmaras que o compõem.
Por outro lado, cabe a esse Conselho, segundo o art. 7 da lei, o dever de "assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional" .
Órgão de articulação entre a sociedade política e a sociedade civil, responde esse órgão colegiado, através de sua Câmara de Educação Básica, à atribuição, posta no art. 9, letra c: "deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto".
Os princípios constitucionais de "diretrizes e bases da educação nacional" e de "coesão nacional" associados à idéia de "mínimos nacionais" existentes em leis ordinárias ou em outras disposições normativas fizeram com que, paulatinamente, esse campo fosse sendo assumido pelo Executivo federal, que estendeu a matéria do ensino secundário (nele já presente) para o ensino fundamental (sempre visto como terreno das unidades federadas).
Com a constitucionalização do "currículo mÍnimo nacional" através da Constituição Federal de 1988, e, dada a maior tradição dessa matéria ao Executivo em termos históricos, pode-se explicar, no interior desse contexto maior, o surgimento dos "parâmetros curriculares nacionais" como iniciativa desse poder.
Assim, desde o governo Itamar Franco e agora através da gestão Fernando Henrique Cardoso, embora com orientações diferenciadas, vêm sendo tomadas iniciativas tendentes a regulamentar e efetivar o dispositivo constitucional do art. 210.
Entretanto, a questão federativa continua presente, mesmo após tentativas de clareamento na Constituição de 1988. Aliás, tendo a educação se tornado ao mesmo tempo (mas não do mesmo ponto de vista) competência privativa da União, concorrente entre a União e os estados e comum entre, os três entes federativos, é que a questão retoma com mais urgência. Prova disso é a exposição de motivos no.273 de 13 de outubro de 1995 (e que viria a ser a PEC/233/95), pela qual o atual governo da União apresenta ao Congresso Nacional uma série de emendas constitucionais. A exposição de motivos encaminhada diz:
Tradicionalmente, ao Governo Federal tem sido atribuída a responsabilidade maior pelo ensino superior, cabendo-lhe, em relação ao ensino básico, apenas função normativa e ação supletiva, esta nunca claramente definida. Aos estados e municípios, coma autonomia que o regime federativo Ihes assegura, cabe o atendimento das necessidades educacionais básicas da população, muito especialmente na faixa da educação fundamental obrigatória.
Em conseqüência dessa indefinição de papéis, resulta um sistema - na realidade uma diversidade de sistemas - de atendimento educacional que deixa muito a desejar, sobretudo no que diz respeito à qualidade da educação oferecida. De fato, se é verdade que em termos quantitativos, notadamente no que se refere à escolaridade obrigatória, o país avançou significativamente, a dispersão de esforços dos três níveis de governo gerou heterogeneidade da qualidade do atendimento escolar.
Vê-se que o problema não é novo e sempre esteve, de algum modo, nas preocupações do governo federal e nas preocupações dos governos estaduais.
Certamente que à oscilação autoritarismo x Estado de Direito não correspondeu linearmente dirigismo curricular x liberdade de criação. Mas é notório que o "vigiar" de modo mais direto a estruturação de currículos e programas e a criação de livros didáticos se aproximam mais dos regimes fechados. Sabe-se que nestes o detalhamento é mais uma forma de verticalismo homegeneizador do que um respeito às diferenças. E, nos regimes politicamente mais.abertos, o programa dos currículos nacionais unificados é mais flexível e propositivo. Espera-se, pois, destes últimos maior sensibilidade e respeito à diferença.
Essa característica de regimes abertos, contudo se defronta com dois eixos fundamentais: a questão federativa e a questão da participação dos sujeitos interessados na formulação dos conteúdos ante as diferentes concepções que os inspiram e mesmo ante as metodologias existentes em relação às ciências naturais e sociais.
A questão federativa sempre deve merecer um enfrentamento cuidadoso. Como vimos, a tradição descentralizada criou culturas institucionais na escola pública que variam de unidade federada para unidade federada. Dentro delas as regiões e as disparidades oferecem outras heterogeneidades, isto sem falar nos "capitais culturais" distintivos de classe sociais.
Logo, uma discussão sobre "parâmetros curriculares nacionais" deve desaguar na obediência à constituição através de um conhecimento profundo dessas diferenças no :interior da escola pública através do caminho próprio defendido pelos grandes nomes da educação: o diálogo.
E, nesse diálogo, e talvez tão importante quanto ele, é preciso saber da "radiografia" das escolas realmente existentes, suas peculiaridades, seus ethos. As escolas brasileiras não são iguais. Suas condições de funcionamento são extremamente diversificadas por regiões, por classes, não sendo desprezível a presença de uma pluralidade étnica e cultural.
É preciso partir dessa "radiografia " para imaginar um método criativo, de tal modo que a unidade nacional pretendida seja unidade, não uniformidade, na medida em que essa unidade passa pelo enfrentamento da diversidade.
Por outro lado, algo semelhante se passa com os métodos. Estes variam muito no âmbito das ciências naturais e sociais, fazendo com que emerja essa outra diferença. De novo o diálogo é o caminho para se evitar tanto uma homogeneidade metodológica como uma síncrese distante da análise científica.
O problema que hoje se coloca em face dos parâmetros é que a sociedade brasileira se "ocidentalizou " muito nas últimas décadas. E o mesmo se pode dizer da educação escolar. O ensino fundamental está bem próximo da universalização quantitativa, o ensino público cresceu no âmbito do ensino médio e a expansão do ensino superior, sobretudo no interior da rede particular, foi muito expressiva.
A pós-graduação está conseguindo formar pesquisadores e estudiosos que, institucionalmente, vêm investigando áreas de conhecimentos e fazendo intercâmbio internacional. E uma das áreas de atuação é justamente o estudo de currículos e de história de disciplinas escolares. As associações científicas, por seu lado, criam, dentro de seus grupos de trabalho, a alimentação contínua deste e de outros temas. Além do que não só pode ignorar que o currículo das quatro primeiras séries envolve o ato pedagógico da alfabetização, pelo qual o acesso à leitura e à escrita dá ao educando mais um modo de ler o mundo:
E para além das faculdades de educação, o tema de ensino de... vem chamando a atenção de mais e mais pesquisadores através de estudos e propostas.
A bibliografia não é pequena. Surgem livros, publicam-se pesquisas, dissertações e teses. As revistas se multiplicam. O mercado editorial apresenta, não sem uma variedade qualitativa, um espectro enorme de publicações.
Também os docentes se organizaram em associações profissionais, seja em frentes salariais, seja em frentes voltadas para a questão pedagógica.
Conclusão
Uma discussão sobre "parâmetros curriculares nacionais" não pode ignorar o quanto esta complexidade exige uma radiografia e uma auscultação da realidade multifacetada da escola pública brasileira e nem o tanto de dever cabível ao Executivo federal em efetivar o mandamento constitucional do art. 210.
E, ao passar do mandamento para a proposta de "parâmetros curriculares nacionais" para o ensino fundamental, é preciso reconhecer uma tradição que joga não só com a tormentosa questão federativa, mas com toda essa gama de realidades novas surgidas nas últimas três décadas.
Que síntese se pode retirar dessa memória histórica?
A questão federativa se impõe pela modalidade de República Constitucional que o Brasil adota desde 1889. O Brasil é uma só entidade soberana pela união de suas entidades federadas. Logo, a federação deve tanto conter laços de união e de unidade entre as unidades federadas, quanto a autonomia destas últimas', no quadro da Constituição Federal. Essa autonomia dos membros federados inclui processos descentralizados de iniciativas concernentes à administração e gestão da coisa pública.
No caso da educação escolar de ensino fundamental, firmou-se toda uma tradição jurídica que, desde o Ato Adicional, a atribuía aos membros federados. A administração e gestão desse serviço público nessa modalidade de ensino coube, e continua cabendo, aos estados e municípios.
Entretanto, dada a situação lamentável e dispersa do ensino primário nos estados, lutou-se muito para que a União, por ter maiores fundos financeiros e por ser o ponto da soberania e da unidade na diversidade, se obrigasse a interferir também na educação escolar primária visando a superação de lacunas e a assinalação de uma identidade nacional em todo o cidadão. Um nível de explicitação foi aquele relativo aos princípios educacionais, sobretudo àquele do direito à educação primária, gratuita e obrigatória.
Outro nível, porém, de exercício da união nacional foi o do estabelecimento de disciplinas escolares. Aí a evidência maior fica por conta das oscilações em torno da laicidade. O Estado "negativo" afirma laicidade, enquanto o Estado interventor a nega. E, lentamente, vai ocorrendo um crescimento de intervenção nessa matéria.
A Revolução de 30 impôs, por decreto, que o Conselho Nacional firmaria "diretrizes gerais" para o ensino primário. Essas "diretrizes", com o avançar dos anos, nem sempre ficaram por aí. É que a elas se adicionou um conjunto de disciplinas obrigatórias para toda a nação, como ficou explícito em 1946, através da Lei Orgânica do Ensino Primário, que fala claramente em "programas mínimos". Isto também parece ter firmado tradição, apesar do caráter mais liberal-descentralizador da lei 4.024/61. Essa tradição se vê legalizada pela lei 5.696/71 e confirmada pelo Parecer 853/71 do Conselho Federal. Diretrizes Gerais e Programas Mínimos se sintetizam na concepção de "Núcleo Comum" dos currículos nacionais.
Duas observações agora se impõem: a União sempre se acautela adjetivando os currículos ou programas ou diretrizes de "mínimos" ou "gerais". Pode-se aplicar aqui o princípio da lógica formal de que "quanto menor a compreensão, maior a extensão". Uma diretriz mínima torna-se mais geral porque, exatamente por ser mínima, pode ser estendida a um maior número de entes federados. E os elos mediadores dessa dimensão nacional - respeitada a autonomia dos estados e municípios em legislar sobre o assunto - serão formalmente o Conselho x Nacional (ou Federal) de Educação e, em certo sentido, o livro didático.
Finalmente, na Constituição Federal de 1988, a idéia de "diretrizes gerais" adequáveis aos conteúdo dos currículos nacionais foi constitucionalizada e sua tradução, sábia e prudente, no corpo da Lei Maior, foi a de uma "fixação". Essa "fixação", no âmbito jurídico significando determinação, limitação, estabelecimento, se limita aos "conteúdos mínimos". O mínimo é que deve ser fixado, limitando-se a União a essa tarefa imperativa ao menor grau de uma grandeza maior. E seu conteúdo indica o que está contido em outra coisa que lhe serve de continente. Esse continente é, de um lado, o processo ensino/aprendizagem, onde se realiza a relação pedagógica, e, de outro, aquela grandeza (certamente maior que o mínimo) que compete aos entes federados (e que se ampliaram com a Constituição Federal de 1988 pela inclusão dos municípios).
Restam os problemas a respeito de que tamanho devem ser essas grandezas. Qual sua conexão com o processo de ensino/aprendizagem?
A relação implícita no pacto federativo supõe a resolução de questões e pendências pelo "contrato" democrático entre União Federada e unidades federadas. Já a conexão com o processo ensino/aprendizagem se faz pelo "contrato social" e democrático entre dirigentes e dirigidos, cujo âmago é a capacidade de participação.
Ora, a participação se inclui no processo de "ocidentalização" da sociedade brasileira e, em especial, da organização dos educadores. A vida sócio-cultural brasileira, desenvolvida no âmbito da sociedade civil, vem se tornando cada vez mais complexa e plural. Ao lado de partidos, sindicatos e outras modalidades de "aparatos privados" de hegemonia, deve-se registrar a organização de educadores e intelectuais em torno de associações profissionais e científicas.
É delas que provém um saber com sabor de prática e com suor da pesquisa. É de ambas que se pode esperar uma participação efetiva e fundamentada para que a relação dirigentes/dirigidos se aproxime cada vez mais do ideal de uma "vontade geral" consensual.
É no interior dessa complexidade que se pode compreender as proposições mais ou menos pendulares ora em torno dos dirigentes, ora em torno dos dirigidos, ante a questão de como efetivar tais "-conteúdos mínimos" .Daí a necessidade de que uma proposta concreta de Parâmetros Curriculares Nacionais seja encaminhada sem pressa e com diálogo. Sem pressa, a fim de que a necessária administração eficiente do mandato constitucional não se converta em posturas verticais, sobretudo no que se refere à formação de professores. Com diálogo, a fim de que a pluralidade de setores competentes no assunto, individuais e sobretudo coletivos, possa suscitar pelo debate um razoável consenso em torno de questão tão fundamental para o ato pedagógico e para um federalismo democrático.
A educação nacional só tem a ganhar na medida em que possa assinalar um caminho diferenciado para sua democratização e para a democratização da sociedade brasileira.
CARLOS ROBERTO JAMIL CURY é professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Filosofia da Educação pela pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).É membro do Conselho Nacional de Educação. Escreveu entre outras obras: CURY, Carlos R.J., (1978). Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais. São Paulo: Cortez & Moraes.

Referências bibliográficas
AZEVEDO, Femando et alli., (1932). A reconstrução educacional no Brasil (ao povo e ao governo): manifesto dos pioneiros da escola nova. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
CÂMARA DOS D EPUT ADOS, ( 1995 ). Proposta de emenda à Constituição n° 233/A.. Mensagem n. 1078/95; .
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, (1989). Brasília: MEC.
BOBBIO, Norberto, (1986). O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
CAMPANHOLE, A., CAMPANHOLE, H.L., (1976). Todas as constituições do Brasil. São Paulo: Atlas.
CHIZZOTTl, A., (1996). A Constituinte de 1823 e a educação. In: FÁVERO, Osmar (org). A educação nas constituintes brasileiras: 1823-1988. São Paulo: Associados.
CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, (1963). Parecer 121/63. Documenta, 14, mai.
_________, (1971). Parecer 853/71. Documenta.
CURY, Carlos Roberto Jamil, (1992). A educação na revisão constitucional de 1925-26. Relatório de pesquisa. Belo Horizonte: UFMG. Mimeo.
_________, (1993). Ensino religioso e escola pública: o curso histórico de uma polêmica entre Igreja e Estado no Brasil. Educação em Revista, 17, Belo Horizonte, UFMG
HORTA, José Silvério Bahia, (1993). O ensino religioso na Itália fascista e no Brasil-1930-1945. Educação em Revista, 17, Belo Horizonte, UFMG.
MARIANI, Clemente, (s/d). Exposição de motivos ao projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional apresentado à Câmara dos Deputados. In: NOBREGA, V .L.N. Enciclopédia da legislação do ensino. Rio de Janeiro.
MARQUES JR., Rivadávia, (1967). Política educacional na República: o ciclo da desoficialização do ensino. Tese de doutoramento. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista - Araraquara.
MOACIR, Primitivo, (1944). A instrução e a República. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde / Imprensa Nacional, vol. 5.
NAGLE, Jorge, (1974); Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: Edusp/EPU.
NUNES, Clarice (org.), (1989). Cadernos ANPEd, n° 2.
PEREIRA, Amarildo G., (1995). O livro didático na educação brasileira. Tese de mestrado. Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.
RODRIGUES, Lêda Boechat, (1968). História do Supremo Tribunal Federa/ -1899-1910: defesa do federalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
SAVIANI, Dermeval (org.), (1990). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Texto aprovado na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados, com comentários de Saviani et al. São Paulo: Cortez/ ANDE.
SCHUCH, Vitor Francisco (org.), (1976). Legislação mínima da educação do Brasil. Porto Alegre: Sagra.
TANURI, Leonor M., (1981). A administração do ensino no Brasil: centralização x descentralização. Revista Didática, 17, São Paulo.
TEIXEIRA, Anísio, (1952). Estudo sobre o projeto de Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol. 18, n° 48, Rio de Janeiro, out./dez.

DISCIPLINA: CURRÍCULOS E PROGRAMAS

LEI N. 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996
Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
O Presidente da República:
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
TÍTULO I
DA EDUCAÇÃO
Artigo 1º - A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
§ 1º - Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º - A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e a prática social.
TÍTULO II
DOS PRINCÍPIOS E FINS DA EDUCAÇÃO NACIONAL
Artigo 2º - A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Artigo 3º - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
VII - valorização do profissional da educação escolar;
VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino;
IX - garantia de padrão de qualidade;
X - valorização da experiência extra-escolar;
XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
TÍTULO III
DO DIREITO À EDUCAÇÃO E DO DEVER DE EDUCAR
Artigo 4º - O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:
I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;
II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio;
III - atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VII - oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola;
VIII - atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde;
IX - padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.
Artigo 5º - O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.
(...)
§ 3º - Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo tem legitimidade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2º do artigo 208 da Constituição Federal, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente.
§ 4º - Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.
§ 5º - Para garantir o cumprimento da obrigatoriedade de ensino, o Poder Público criará formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino, independentemente da escolarização anterior.
(...)
Artigo 21 - A educação escolar compõe-se de:
I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;
II - educação superior.
(...)
Artigo 22 - A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.
(...)
Artigo 26 - Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
(...)
§ 4º - O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
(...)
Artigo 32 - O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:
(...)
IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.
(...)
§ 3º - O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
(...)
Artigo 37 - A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria.
§ 1º - Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.
(...)
Artigo 39 - A educação profissional, integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva.
Parágrafo único. O aluno matriculado ou egresso do ensino fundamental, médio e superior, bem como o trabalhador em geral, jovem ou adulto, contará com a possibilidade de acesso à educação profissional.
(...)
Artigo 58 - Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais.
§ 1º - Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender as peculiaridades da clientela de educação especial.
§ 2º - O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular.
§ 3º - A oferta de educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil.
Artigo 59 - Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais:
I - currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades;
II - terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados;
III - professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns;
IV - educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora;
V - acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular.
(...)
Artigo 75 - A ação supletiva e redistributiva da União e dos Estados será exercida de modo a corrigir, progressivamente, as disparidades de acesso e garantir o padrão mínimo de qualidade de ensino.
(...)
Artigo 78 - O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:
I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas línguas e ciências;
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
Artigo 79 - A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural à comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.
§ 1º - Os programas serão planejados com audiência das comunidades indí-genas.
§ 2º - Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos:
I - fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena;
II - manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas;
III - desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;
IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado.
(...)
Artigo 87 - É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta Lei.
§ 1º - A União, no prazo de um ano a partir da publicação desta Lei, encaminhará, ao Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação, com diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos.
§ 2º - O Poder Público deverá recensear os educandos no ensino fundamental, com especial atenção para os grupos de sete a quatorze e de quinze a dezesseis anos de idade.
§ 3º - Cada Município e, supletivamente, o Estado e a União, deverá:
I - matricular todos os educandos a partir dos sete anos de idade e, facultativamente, a partir dos seis anos, no ensino fundamental;
II - prover cursos presenciais ou a distância aos jovens e adultos insuficientemente escolarizados;
III - realizar programas de capacitação para todos os professores em exercício, utilizando também, para isto, os recursos da educação a distância;
IV - integrar todos os estabelecimentos de ensino fundamental do seu território ao sistema nacional de avaliação do rendimento escolar.
§ 4º - Até o fim da Década da Educação somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço.
§ 5º - Serão conjugados todos os esforços objetivando a progressão das redes escolares públicas urbanas de ensino fundamental para o regime de escolas de tempo integral.
§ 6º - A assistência financeira da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a dos Estados aos seus Municípios, ficam condicionadas ao cumprimento do artigo 212 da Constituição Federal e dispositivos legais pertinentes pelos governos beneficiados.
(...)
Artigo 91 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Artigo 92 - Revogam-se as disposições das Leis ns. 4.024, de 20 de dezembro de 1961, e 5.540, de 28 de novembro de 1968, não alteradas pelas Leis ns. 9.131, de 24 de novembro de 1995 e 9.192, de 21 de dezembro de 1995 e, ainda, as Leis ns. 5.692, de 11 de agosto de 1971 e 7.044, de 18 de outubro de 1982, e as demais leis e decretos-leis que as modificaram e quaisquer outras disposições em contrário.

quarta-feira, junho 17, 2009

DOCÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR II: O ENFERMEIRO PROFESSOR E A DOCÊNCIA UNIVERSITARIA

O ENFERMEIRO PROFESSOR E A DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA

Malvina Thais Pacheco Rodrigues
José Augusto de Carvalho Mendes Sobrinho

Introdução
Revendo alguns textos sobre o ensino nos cursos superiores no Brasil, como os elaborados por Batista (2005); Silva, Gomes e Rodrigues (2004) e Faria e Casagrande (2004)é observado que, ainda hoje, o que predomina na formação universitária é a lógica tecnicista, aênfase no saber e no saber-fazer. No Curso de Graduação em Enfermagem não é diferente. Esta situação é evidenciada no fato de que, até bem pouco tempo, bastava ser um especialista competente para exercer a docência superior. Consequentemente, se os novos profissionais exercerem com técnica e rigor sua profissão está cumprida a função da universidade. Entretanto, observa-se a necessidade de uma educação que possibilite o desenvolvimento contínuo de pessoas e da sociedade. Não é mais possível formar profissionais com o ensino voltado somente para a racionalidade técnica. É necessária a busca de uma prática docente que possibilite aos alunos desenvolverem um pensamento reflexivo através da valorização da criatividade, da reflexão e participação, condições indispensáveis para a inserção social e construção da cidadania. Em meio às mudanças dos paradigmas educacionais e a necessidade de adaptação a essas transformações, o Curso de Enfermagem, assim como os demais cursos da área da saúde, enfrentam um problema: a maior parte dos professores não tem formação pedagógica. Reis, Gomes e Rodrigues (2004, p.132) afirmam que “Logo, eles ainda ‘ensinam a fazer’, como fizeram com eles, e transmitem o conteúdo que receberam, geralmente, da forma como receberam”. Pimenta e Anastasiou (2005) afirmam que profissionais de diversas aéreas adentram do campo da docência do ensino superior como decorrência natural de suas atividades e por razões e interesses variados e, na maioria das vezes nunca se questionaram Enfermeira, especialista em Saúde Pública e em Formação Pedagógica em Educação Profissional na Área de Saúde: Enfermagem. Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Piauí. Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí/ CCE/PPGED. Doutor em Educação (UFSC) sobre o que é ser professor.
Dessa forma, atuam no ensino superior sem terem sido preparados para o desempenho da docência. Neste sentido é necessário repensar o papel do docente universitário enfermeiro e como este articula sua prática pedagógica no sentido de atender as novas funções que a educação impõe. Nessa perspectiva, o papel do professor universitário deve ser repensado a partir de três competências para a docência no ensino superior: ser competente em uma área de conhecimento; possuir domínio da área pedagógica e exercer a dimensão política na prática da docência universitária. A primeira delas se refere ao domínio dos conhecimentos básicos da área e á experiência profissional do campo. A segunda envolve o domínio do conceito de processo-aprendizagem, integrando o desenvolvimento cognitivo, afetivo-emocional e de habilidades, bem como a formação de atitudes, abrindo espaços para a interação e a interdisciplinaridade. A terceira abrange a discussão, com os alunos, dos aspectos políticos e éticos da profissão e do seu exercício na sociedade, para que nela possam se posicionar como cidadãos e profissionais (MASETTO, 2001 apud REIS; GOMES; RODRIGUES, 2004, p. 138). Assim, buscamos através da revisão da literatura refletir sobre a necessidade da formação pedagógica do enfermeiro professor em virtude da adequação desta formação as novas demandas educacionais propostas pelas diretrizes curriculares do Curso de Graduação em Enfermagem.
A discussão será apresentada em dois tópicos: Docência em Enfermagem: aspectos históricos e Tendências Atuais na Formação do Professor Universitário. Medeiros, Tipple e Munar (1999) afirmam que a criação da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras do Hospital de Alienados, no Rio de Janeiro, em 1890, foi a primeira iniciativa oficial no que se refere ao ensino profissional de Enfermagem no Brasil. Essa escola foi criada em decorrência do rompimento das relações entre a Igreja e o Estado quando na ocasião da Proclamação da República. Então, as irmãs de caridade, que eram responsáveis pela administração do hospital, abandonaram o serviço e os médicos assumiram o poder. Dessa forma, em virtude da falta de mão de obra para assumir os trabalhos foi apontada à possibilidade de resolução desse problema com a criação de uma escola para formar enfermeiros e enfermeiras. O Decreto 791/1890 fixava os objetivos da escola, currículo, duração do curso, condições de inscrição e matrícula, título conferido, garantia de preferência de emprego e etc. Era exigido dos candidatos no mínimo saber ler e escrever, conhecer aritmética e apresentar atestado de bons costumes. Entretanto, este decreto não contemplava recursos para viabilização e concretização desta instituição de ensino. Esta escola foi posteriormente denominada de Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, hoje unidade da Universidade do Rio de Janeiro (MEDEIROS, TIPPLE E MUNAR, 1999). Com a primeira Guerra Mundial e a necessidade de melhorias nas condições de assistência aos feridos foi criado no Brasil em 1916, a segunda Escola de Enfermagem: Escola da Cruz Vermelha. Segundo Paixão (1979), o caráter da instituição era caritativo, semelhantes às atividades prestadas por instituições cristãs.
Consequentemente, a prática da enfermagem que sempre esteve ligada às atividades de caridade, abnegação e sacrifício foi campo de atuação para a Cruz Vermelha. Em 1923, em um momento histórico em que o Brasil sofria com as epidemias (varíola, febre amarela etc.) era necessário estruturar os serviços de saúde no Brasil de forma a se adequarem às necessidades capitalistas. Desse modo, foi criada, por iniciativa governamental, a Escola de Enfermagem do Departamento Nacional de Saúde Pública (MURAKAMI, 1996).
Medeiros, Tipple e Munar (1999) afirmam que somente após 36 anos da criação das primeiras escolas de enfermagem é que foi institucionalizado o ensino de Enfermagem no Brasil por meio do Decreto 17.268/1926.
Com o Decreto 20.109/1931, a Escola de Enfermagem do Departamento Nacional de Saúde Pública é oficializada e denominada de Escola Ana Néri. A partir deste momento, todas as demais escolas criadas deveriam se equiparar à escola-padrão Ana Néri, para poderem emitir seus diplomas. Em 1937, é considerada instituição complementar da Universidade do Brasil e em 1946 é incorporada a esta Universidade. (MEDEIROS; TIPPLE; MUNAR, 1999). A Escola Ana Néri foi um marco fundamental na Enfermagem Brasileira. Desse modo, a Enfermagem passa a ser reconhecida como um ramo do saber e do trabalho da saúde. Nasce, verdadeiramente, a Enfermagem profissional ou Enfermagem Moderna sendo organizada sob parâmetros próprios, produzindo e sistematizando os conhecimentos necessários as suas atividades práticas e estabelecendo as normas que regulam o seu exercício profissional. A escola aparece em um momento em que o Estado Brasileiro define as primeiras políticas no campo da saúde baseadas em diretrizes definidas e coordenadas por órgãos de saúde especificamente constituídos para o fim de instituir, coordenar e executar ações de saúde de cunho coletivo (PIRES, 1989). Em 1931 foi criado o primeiro curso superior de Enfermagem. Neste ano, o governo instituiu o Estatuto das Universidades Brasileiras, adotando o regime universitário que apresentava como características: reunião de escolas ou faculdades que desenvolviam um curso específico com autonomia na área didática para seleção de seus candidatos, além do gerenciamento dos recursos repassados a este curso; direção por um conselho Universitário composto por representantes de várias escolas ou faculdades e organização dos cursos em função de cadeiras. (ROMANELLI, 1995).
O currículo do Curso de Enfermagem possuía as seguintes características:
• Duração de dois anos e quatro meses, divididos em cinco fases, a última das quais reservada para a especialização Enfermagem clínica, Enfermagem de
Saúde Pública;
• Exigência do diploma de Escola Normal como requisito de entrada facilitando, porém, a admissão dos candidatos que, na falta desse diploma, provassem capacitação para o curso;
• Os quatro primeiros meses correspondiam ao período probatório das escolas norte-americanas, sendo essencialmente teórico;
• A prestação de oito horas diárias de serviço ao hospital era obrigatória, com direito a residência mensal e duas meias folgas por semana. (MEDEIROS; TIPPLE; MUNARI, 1999, p.6)

Em 1962, com o processo do CFE nº 271/62 o currículo do curso de Enfermagem passou por profundas modificações sendo priorizado o caráter curativo. Os hospitais foram considerados como centros hegemônicos da assistência à saúde (DILLY; DE JESUS, 1995). Hoje, o ensino da graduação em Enfermagem é conduzido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, que propiciam uma formação contemporânea, contextualizada e dinâmica, pautada na indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão, gerando um enfermeiro generalista, crítico e apto a atuar em todas as dimensões do cuidado como promotor da saúde do cidadão, da família e da comunidade.
As Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação em Enfermagem (Resolução CNE/CES Nº 1133), afirma que estes cursos devem ter um Projeto Pedagógico – PP, construído coletivamente, centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem. Afirma ainda que a estrutura dos cursos de graduação em Enfermagem deverá assegurar a implementação de uma metodologia no processo ensinar–aprender que estimule o aluno a refletir sobre a realidade social e aprenda a aprender (BRASIL, 2001).
Dessa forma, Brasil (2001) assegura que o egresso do curso de enfermagem deve ter uma formação generalista, humanista, critica e reflexiva regulada por princípios éticos.
Para tanto, além de ser um profissional com uma formação com base no rigor técnico e cientifico deve desenvolver competências ético-políticas. Assim, o currículo em vigor do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Piauí (1997) destaca que o processo de formação do Enfermeiro deverá ter como base conceitual e referencial alguns princípios, dentre eles destacamos: O entendimento de que a educação para a transformação, concebe o aluno como construtor do seu conhecimento, a partir da reflexão e indagação de sua prática, é uma linha pedagógica que pode permitir ao enfermeiro comprometer-se com a solução dos problemas da sociedade que atuará. Observamos, dessa forma, que temos o dispositivo legal necessário para formar um profissional crítico, reflexivo com comprometimento ético e humano. Entretanto, somente o dispositivo legal não é o suficiente para alterar a prática pedagógica. È necessário à formação pedagógica do enfermeiro professor. Reis, Gomes e Rodrigues (2004) afirmam que são raros os docentes preparados didaticamente, e qualificados, simultaneamente, para exercer a docência conforme o preconizado pelas diretrizes político-pedagógicas. Tendências atuais na Formação do Professor Universitário, o desempenho e o desenvolvimento profissional do professor tem sido objeto de análise e estudos a partir do movimento de transformação do ensino superior no Brasil. Atualmente, espera-se do docente universitário que ele forme profissionais competentes e comprometidos socialmente. Deste modo, Farias e Casagrande afirmam que:
[...] deve haver condições de capacitação, qualificação e desenvolvimento do corpo docente, para que o processo de ensino aprendizagem seja mais efetivo, no que diz respeito à área pedagógica, à perspectiva político-social e à pesquisa (2004, p. 4).
Dessa forma, a reflexão acerca da formação pedagógica do docente enfermeiro é essencial devido à complexidade da prática profissional inserida na tarefa da educação. Batista (2005) afirma que, em geral, a docência em saúde é considerada secundária deixando de reconhecer a existência de uma relação entre ensino, aprendizagem e assistência bem como de ser discutida as especificidades dos cenários do processo ensino-aprendizagem e seus atores: professor, aluno, pacientes, profissionais de saúde e comunidade. De acordo com Isaia e Bolzan (2004) os professores assumem os encargos docentes respaldados em tendência natural e ou em modelos de mestres que internacionalizaram em sua formação inicial bem como ao exercício da sua prática como profissional em uma atividade específica que não a da docência superior. A formação do docente em enfermagem deve ser consolidada com base no domínio de conhecimentos científicos e na atuação investigativa no processo de ensinar e aprender, recriando situações de aprendizagem por investigação do conhecimento de forma coletiva com o propósito de valorizar a avaliação diagnóstica dentro do universo cognitivo e cultural dos acadêmicos como processos interativos. Pimenta e Anastasiou (2005) afirmam que “a sua tarefa é garantir que se apropriem do instrumento científico, técnico, tecnológico, de pensamento, político, social e econômico, de desenvolvimento cultural, para que sejam capazes de pensar e gestar soluções”.
Nesse sentido, Freire (1996) afirma que: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua própria produção ou sua construção” (p. 25). Diz ainda que a educação deva ser feita em profunda interação educador-educando, voltada especialmente para a reelaboração dos conhecimentos e habilidades aprendidas e a produção de novos conhecimentos. Para tanto devem ocorrer ações como a reflexão crítica, a curiosidade científica, a criatividade e a investigação dentro da realidade do educando, tendo o professor a responsabilidade de articular metodologias de ensino caracterizado por uma variedade de atividades estimuladoras da criatividade dos alunos. A prática docente deve superar o ato de transmitir informações. O professor precisa assumir um lugar de mediador no processo ensino-aprendizagem de forma que os alunos ampliem suas possibilidades humanas de conhecer, duvidar e interagir com o mundo através de uma nova maneira de educar.
Segundo Batista (2005) àquele modelo de ciência que tem como base a compartimentalização do conhecimento em disciplinas, fragmentando o saber e estabelecendo dicotomias em torno das relações entre teoria e prática, razão e emoção, pensar e fazer deve ser abandonado já que não atende as transformações da sociedade. É preciso ampliar as possibilidades humanas de criatividade e interrogação buscando o desenvolvimento contínuo de pessoas e da sociedade. Neste contexto, a formação pedagógica do professor é um meio essencial de superação deste modelo tradicional de ensino.
Neste contexto, historicamente tem sido atribuída á pós-graduação a responsabilidade de formar este docente através da disciplina Metodologia do Ensino Superior. Pimenta e Anastasiou (2005) afirmam que esta tem sido, para muitos, a única oportunidade de uma reflexão sistemática sobre o exercício da docência. Afirmam também que esta disciplina tem carga horária reduzida, geralmente limitada à 60h, e nem sempre é ministrada por profissionais que dominam os saberes necessários a docência. Dessa forma, essa estratégia não tem respondido as necessidades de formação do professor. No atual cenário educacional, um conceito muito utilizado por formadores de professores e educadores para que sejam referenciadas as novas tendências de formação de professores é a reflexão. De acordo com Nóvoa (1995), a reflexão é definida como o processo no qual os professores aprendem a partir da análise e interpretação da sua própria atividade, ou seja, a profissão de professor conduz a criação de um conhecimento específico adquirido através da prática.
Conceito semelhante de reflexão é apontado por Costa (2003, p.37) quando afirma que a reflexão “É uma maneira de encarar os problemas e responder a eles, uma maneira de ser professor, que implica intuição, emoção e paixão. Não é um conjunto de técnicas que possa ser empacotado e ensinados aos professores’’.
Nesse sentido, entendemos que reflexão constitui-se um processo em que o professor avalia constantemente sua prática através da auto-observação e, consequentemente, modifica sua atitude. Assim, Freire (1996) afirma que no desenvolvimento docente “o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente sobre a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática” (p. 43).
Dessa forma, a formação como processo de reflexão envolve o exame constante das próprias experiências, o diálogo crítico com as teorias pedagógicas e o reconhecimento de que a postura reflexiva deve marcar o trabalho docente. Portanto, precisa ser explorada no processo de formação do professor, uma vez que favorece a construção da autonomia para identificar e superar as dificuldades do cotidiano (ZEICHER, 1993).
Para melhor entendimento dessa formação profissional reflexiva iremos alicerçar nossa discussão considerando os estudos de Freire (1996), Tardif (2002) e Perrenoud (1993). Freire (1996) indica os saberes importantes na profissão do professor, vinculados aos saberes mobilizado na prática. Ele afirma que é preciso que o docente assuma-se como sujeito da produção do saber e se convença que ensinar é criar possibilidades para a produção e/ou construção do conhecimento. Para tanto, diz que ensinar exige: rigorosidade metódica, pesquisa, respeito aos saberes do educando, criticidade, estética e ética, risco, aceitação do novo, rejeição à discriminação, etc. Tardif (2002) repensa a formação dos professores levando em conta os saberes dos professores e as realidades específicas do trabalho cotidiano. Propõe um modelo de formação reconhecendo o professor como um profissional produtor de saberes. Entende o saber docente como aquele formado pela associação, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da: formação profissional, transmitidos pelas instituições de formação de professores; disciplinares, que correspondem aos diversos campos do conhecimento; curriculares, das instituições escolares, compreendem os discursos, objetivos, conteúdos e métodos que os professores devem aprender a aplicar; e os experiênciais, baseados no seu trabalho cotidiano, brotam da experiência e são por ele validados. Tardif (2002) considera os saberes experiênciais como núcleo vital do saber docente. A partir dele os professores tentam transformar suas relações de exterioridade com os saberes em relações de interioridade com sua própria prática. Logo, os saberes experiênciais tem origem na prática cotidiana dos professores em confronto com as condições da profissão. Dessa forma, é formado por todos os demais saberes, porém validados pelas certezas construídas na prática e na experiência. Neste sentido, a prática cotidiana da profissão não favorece apenas o desenvolvimento de certezas “experiênciais”, mas permite também uma avaliação dos outros saberes, através da sua retradução em função das condições limitadoras da experiência. Assim, a prática constitui um processo de aprendizagem através da qual os professores retraduzem sua formação e a adaptam á profissão, eliminando o que lhes parece inutilmente abstrato ou sem relação com a realidade vivida e conservando o que pode servi-lhes de uma maneira ou de outra.
Assim, esse autor aponta características dos saberes profissional: a) temporais, adquiridos através do tempo; b) plurais e heterogêneos, provêm de diversas fontes, não formam um repertório de conhecimentos unificados e procuram atingir diferentes tipos de objetivos; c) personalizados e situados, cada professor é diferente e suas ações carregam marcas dos contextos nos quis se inserem; d) carregam marcas do ser humano visto que o objeto de trabalho do professor é o ser humano. Dessa maneira,
Enquanto profissionais, os professores são considerados práticos refletidos ou “reflexivos” que produzem saberes específicos ao seu próprio trabalho e são capazes de deliberar sobre suas práticas, de objetivá-las e partilhá-las, de aperfeiçoá-las e de introduzir inovações susceptíveis de aumentar sua eficácia. A prática profissional não é, vista assim, como um simples campo de aplicação de teorias elaboradas fora dela [...]. Ela torna-se um espaço original e relativamente autônomo de aprendizagem e de formação para os futuros práticos, bem como um espaço de produção de saberes e de práticas inovadoras pelos professores experientes. Esta concepção exige, portanto, que a formação profissional seja redirecionada para a prática e, por conseguinte, para a escola enquanto lugar de trabalho dos professores (TARDIF, 2002, p. 286,). Observa-se que o modelo de formação apontado pelo referido autor rompe com o paradigma tradicional. È proposto um encontro entre a teoria e a prática de forma a se completarem o que resulta em uma prática pedagógica crítica, reflexiva e transformadora. Dessa forma, para este modelo ser colocado em ação é necessário que haja transformações importantes nas práticas vigentes em matéria de formação de professores, seja na formação inicial ou contínua quanto em termos de pesquisa. Sendo assim, a formação geral e disciplinar não pode mais ser concebida sem a articulação com a formação prática. Neste sentido, a inovação, o olhar crítico, a “teoria” devem estar vinculados aos condicionantes e ás condições reais de exercício da profissão e contribuir assim, para a sua evolução e transformação (TARDIF, 2002).
Nesse contexto, Perrenoud (1993) também propõe um modelo de formação de professores que ultrapassa o processo pedagógico que se limita ao treinamento técnico. È proposto uma formação que propicie uma verdadeira autonomia do docente.
Para o referido autor a formação dos professores deve ser elaborada de acordo com três eixos: 1) prática entre a rotina e a improvisação regulada; 2) a transposição didática entre a epistemologia e bricolage; 3) o tratamento das diferenças entre indiferença e diferenciação. No primeiro eixo o autor afirma que a profissão é composta por rotinas que o docente põe em ação de forma relativamente consciente, mas sem avaliar o seu caráter arbitrário, logo sem a escolher e controlar verdadeiramente. Tendo em consideração a urgência e o caráter impensável da prática, o professor realiza coisas que desconhece ou que prefere não ver. O segundo eixo diz respeito á transposição didática. O saber, para ser ensinado, adquirido e avaliado sofre transformações: segmentação, cortes, progressão, simplificação, tradução em lições, aulas e exercícios. Perrenoud (1997, p.24) afirma que “ensinar é fabricar artesanalmente os saberes tornando-os ensináveis, exercitáveis e passíveis de avaliação no quadro de uma turma, de um ano, de um horário de um sistema de comunicação e trabalho”. No terceiro eixo é apontada a necessidade de trabalhar as diferenças. Afinal, seja qual for o grau de seleção, ensinar é confrontar-se com um grupo heterogêneo no que se refere à personalidade, cultura, atitudes, projetos, etc. Segundo Perrenoud a boa formação não é o suficiente para ensinar bem. São necessários outros requisitos:
1. que a formação prepare as pessoas não só a seguir ideais, mas a conserva-los face ás imposições concretas da prática;
2. que a formação, enquanto mensagem prescritiva, não seja constantemente desmentida pelas outras mensagens que os professores recebem;
3. que o funcionamento do sistema escolar sela tal qual que os professores tenham um interesse pessoal em pôr em prática a formação recebida
(1993, p.99).
Sendo assim, de acordo com Perrenoud (1993), pensar a formação inicial é pensar a prática pedagógica, a profissão, a carreira, as relações de trabalho e de poder nas organizações escolares, a parte da autonomia e de responsabilidade conferida aos professores, individual ou coletivamente. O papel da formação inicial pode variar segundo a tendência dominante num quadro de processo de profissionalização ou proletarização. Referente à profissionalização, a formação prepara os futuros professores para se questionarem, identificar e resolver os problemas. Propicia a reflexão sobre a prática de cada professor. Configura-se como um modelo de verdadeira autonomia do professor. No quadro da proletarização, a formação prepara para seguir os modelos didáticos pensados por outros e regulamente postos em dia a partir do centro. Os questionamentos e a reflexão não fazem parte deste modelo ficando evidente à dependência relativa á esfera dos especialistas. Dessa forma, para o desenvolvimento de um ensino reflexivo, faz-se necessário que os professores tenham domínio de suas atividades. Para tanto, é essencial que o professor tenha uma mentalidade aberta, visto que, no seu cotidiano, há problemas para serem intermediados por ele. Por outro lado, precisará ter a responsabilidade intelectual, pois esta assegura a integridade e o entusiasmo responsáveis pela capacidade de renovação. É, pois, na prática reflexiva que o conhecimento se produz e este é o saber do docente constituído ao longo do processo histórico de organização e elaboração pela sociedade.
Neste sentido, as práticas de formação que estão em torno dos professores devem contribuir para a emancipação profissional e para a consolidação da produção de seus saberes e valores.

Considerações Finais
Esta reflexão sobre a formação pedagógica do enfermeiro professor permite apresentar as seguintes conclusões finais:
• A formação docente é um processo complexo, pois sofre interferência das questões sociais, econômicas e políticas;
• É preciso superar a forma tradicional voltada somente para a formação de profissionais técnicos;
• Somente o dispositivo legal não é suficiente para alterar a prática pedagógica;
• A formação se constrói através de um trabalho de reflexividade crítica sobre a prática. Esta análise leva-nos a repensar a formação e refletir como podemos contribuir para a consolidação de uma prática pedagógica pautada no principio da autonomia, reflexão, interdisciplinaridade e da integração no ensino da Enfermagem;
• Não podemos formar enfermeiros generalistas, críticos e reflexivos sem que os enfermeiros professores tenham uma adequada formação;
• É necessário maior investimento na formação do enfermeiro professor para que o processo ensino-aprendizagem seja mais efetivo;
• A formação do docente enfermeiro precisa ser redirecionada de forma que esteja baseada na reflexão sobre a prática cotidiana considerando o professor como um pesquisador da própria prática;
• Uma das formas de suplantar a situação atual é o estabelecimento de programas de formação continuada na perspectiva da ação-reflexão-ação e que considere o coletivo, o saber experiencial, o ciclo de vida do professor e a universidade como o lócus de formação.

Referências
BATISTA, N.A. Desenvolvimento docente na área da saúde: uma análise. Trabalho, Educação e Saúde, São Paulo, n.02, v.03, p.283-294, 2005.
BRASIL. Resolução CNE/CES nº 1133, de 01 de outubro de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, 03 out. 2001. Seção 1E, p. 131.
COSTA, F.N.A. Visitando a prática pedagógica do enfermeiro professor. São Carlos: Ruma, 2003.
DILLY, C.M.L.; DE JESUS, M.C.P. Processo educativo em Enfermagem: das concepções pedagógicas à prática profissional. São Paulo: Robe, 1995.
FARIA, J.I.L.; CASAGRANDE, L.D.R. A educação para o século XXI e a formação do professor reflexivo na Enfermagem. Revista Latina-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, vol.12, n.05, set./out. 2004.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários á prática educativa. 19. ed. São Paulo: Paz e terra, 1996.
GOMES J.B.; CASAGRANDE, L.D.R. A educação reflexiva na pós modernidade: uma revisão bibliográfica. Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo, V. 10, n.05, p 696-703, 2002.
ISAIA, S.M.A.; BOLZAN, D.P.V. Formação do professor do ensino superior: um processo que se aprende? Revista Educação, Santa Maria (RS), V. 29, n.02, 2004. Disponível em: . Acesso em: 16 jul.2006.
NÓVOA, A. (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.
PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote, 1993.
PIMENTA, S. M.; ANASTASIOU, L.G.C. Docência no ensino superior. São Paulo: Cortez, 2005.
REIS, S.M.A.; GOMES, V.L.; RODRIGUES, M.M. A docência nos cursos superiores na área
da saúde. Ícone Educação, Uberlândia, n.1/2, v.10, p.131-144, jan./dez., 2004.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUI. Departamento de Enfermagem. Currículo do
curso de Enfermagem. Teresina, 1997.
ZEICHNER, K.M.A. A formação reflexiva de professores: idéias e práticas. Lisboa: Educa,
1993.