quinta-feira, maio 28, 2009

FUNDAMENTOS FILOSOFICOS E ECONOMICOS DA EDUCAÇÃO

O VAZIO NA ECONOMIA: o deserto e as miragens*

O vazio está para a Economia neoclássica assim como a morte coloca-se para o ser humano. Sua existência é um fato, sua inevitabilidade é um mistério que a Economia é incapaz de desvendar. Em outras palavras, diríamos que a compreensão do vazio parece fugir ao escopo da teoria econômica neoclássica. A que vazio eu me refiro aqui ? Ao vazio de consumo, ao vazio de propriedade, ao vazio de renda, ao vazio de expectativas. Há centenas de milhões de despossuídos no planeta, centenas de milhões de indivíduos sem renda ou com renda insuficiente para a sobrevivência e para o consumo mínimo, centenas de milhões de pessoas sem qualquer expectativa de integração digna ao ambiente econômico de nossas sociedades.
A teoria econômica dominante, neoclássica, não sabe tratar, tecnicamente, esses campos vazios, pois ela prioriza o estudo da produção e da oferta relativamente ao consumo, na crença de que "a oferta cria sua própria procura". Na atualidade, a maioria dos economistas neoclássicos endossa a assertiva de Jean Baptiste Say para quem "o objeto da Economia Política é o de conhecer meios pelos quais as riquezas se formam, se distribuem e se consomem" [Léon Walras, 1996], concentrando-se no estudo da escassez e do funcionamento dos mercados. A realidade é apresentada sob forma de modelos nos quais só aparecem os fenômenos considerados relevantes, descritos em linguagem matemática e de difícil entendimento.
À exceção de algumas escolas (como a marxista e a dos regulacionistas franceses), os centros de pensamento econômico contemporâneo são monopolizados pelo estudo dos mercados, suas divergências teóricas limitam-se ao espaço que o mercado deve ocupar na organização econômica e social, da nação ou do planeta. Ora o mercado competitivo assemelha-se a um Todo Poderoso cuja grande virtude é permitir que cada indivíduo e cada firma preocupem-se apenas com o seu próprio problema de maximização, atentando para os sinais de escassez relativa transmitidos pelo sistema de preços. Ora as falhas de mercado e a presença de monopólios, oligopólios, cartéis, trustes etc, constituem uma justificativa importante para a intervenção do Estado na economia. Por isto, Samuelson observa que a "análise mais atenta revela que os economistas concordam muito mais vezes do que se pensa. Existe um consenso genérico ... (sobre) temas de microeconomia tais como a importância do mercado na alocação de recursos, os efeitos prejudiciais de muitas regulamentações governamentais... e os benefícios do comércio e da especialização." [Samuelson: p.11]. Daí também a afirmação de Belluzo, para quem "a louvação do mercado é a senha de ingresso no clube dos esquerdistas esclarecidos – quase igual à direita clássica." (FSP, 24/09/2000).
Este consenso, mais conhecido como "pensamento único", concede pouquíssima atenção a temas tão importantes quanto as precariedades do consumo da grande massa populacional – sobretudo nos países periféricos -, a miserabilidade e o crescimento da multidão de excluídos. Essas são questões que a Economia rejeita e relega ao espaço do Político, ou da Psicologia e da Religião, quando se trata do entendimento de suas origens ou da formulação de soluções. Assim, por exemplo, a explicação das mazelas sociais verificadas nos países mais pobres, ou nos segmentos sociais de menor renda, costuma apoiar-se na análise dos costumes e das tradições: práticas tribais, a corrupção ou a incompetência dos governantes, excesso de filhos, vícios, falta de higiene e má educação, inadequação das instituições sociais, a vaca sagrada dos hindus etc. Essa lista de defeitos quase "endêmicos", muitas vezes é complementada pela crença na "ação de leis naturais, ou divinas" e na aceitação passiva de que "sempre foi assim, há pobres e miseráveis em todas as sociedades"...
A maior ausência de reflexão, por parte dos seguidores do pensamento único, diz respeito ao impacto exercido pela distribuição da propriedade sobre as desigualdades sociais, e aos efeitos da dominação de uns países sobre outros. Distribuição de renda e imperialismo, constituem duas grandes ausências na agenda dos economistas neoclássicos. Nem as universidades têm conseguido resistir ao pensamento único. Diz-nos o prof. Milton Santos que "o sistema universitário, no qual deveria prevalecer a diversidade de idéias, tem sido vítima da doença da globalização, isto é, a tendência a um pensamento único." [M.Santos, entrevista ao JB de 27/08/2000].
Na verdade, o campo de estudos e de reflexão da teoria econômica pós moderna pode ser assemelhado a um deserto, isto é a um grande território onde a vida é restrita, há muitos transeuntes e poucos residentes, um espaço decorado por infinitas ilusões – as miragens – e por alguns oásis para os bem aventurados. Assim como no deserto, onde a procura por oásis é permanente, na sociedade atual há uma busca incessante pela penetração nos campos restritos da informação e da comunicação virtual, que constituem a infraestrutura básica por onde viajam os produtos do mundo pós moderno. Nesse mundo, a possibilidade do que se chama de crescimento econômico liga-se particularmente às indústrias do lazer (cultura, esportes e turismo), à estabilidade dos mercados financeiros e às atividades vinculadas à segurança pública e individual. Essas atividades constituem verdadeiros oásis à cuja sombra deleitam-se os poucos privilegiados. Encontram-se em espaços protegidos por muralhas políticas e ideológicas, e por medidas efetivas legais e de segurança. Dali saem e viajam pelo mundo os grandes capitais que circulam como morcegos na calada da noite e que, como vampiros, alimentam-se do sangue e do sofrimento das centenas de milhões de excluídos e de despossuídos. Penetram nos lares mais humildes pregando uma doutrina de ódio e de humilhação, tão bem descrita por Viviane Forrester em "O Horror Econômico".
Os marginalizados e excluídos do sistema são transeuntes, os beduínos sem tendas, nômades, e são absolutamente funcionais para o grande capital pois é a sua presença maciça que justifica o crescimento da indústria de segurança, tão importante quanto pouco divulgada, de onde fluem novas prisões, armamentos, carros blindados, milícias de seguranças particulares etc. E eles já nem constituem mais um exército industrial de reserva, tal a desvalorização da mão-de-obra não qualificada no mundo atual...
Longe dos oásis a vida é muito difícil, muito penosa. É absolutamente necessário limitar o crescimento das populações que vagueiam pelo deserto e que se sustentam com as sobras do banquete. Nas palavras do ex-chefe do Banco Mundial "altos e crescentes índices de pobreza levam à agitação, à instabilidade, ao caos". [O Globo, 7/06/2000].
A economia neoclássica não nutre simpatia pelos pobres e aconselha limitar sua proliferação. Afinal de contas, é melhor seguir o exemplo dos mais ricos que se dispõem, cada vez mais, a não ter filhos, nem família. Ela tampouco é simpática aos idosos, sobretudo se o rendimento deles depender do sistema de Seguridade Social. Afinal de contas, como acabou de informar o Secretário de Política Econômica, de Brasília, "o governo deveria gastar menos com os idosos e mais com os jovens, porque os pobres entre os jovens atingem 50% do grupo etário, e apenas 25% entre os idosos" [Jornal do Brasil 23/09/2000]. Estranho raciocínio vindo de um profissional supostamente bem formado em escolas da elite norte-americana.
Ter poucos ou nenhum filho, não viver muito ou ser obrigado a mendigar na velhice, não significa investir contra a própria vida ? Exatamente como se estivéssemos em um grande deserto onde a vida humana e vegetal é restrita a pequenos espaços, onde não há condições para desenvolver sentimentos de solidariedade e de fraternidade, pois é enorme a competição pelo espaço vital. Identifico assim mais um vazio - vazio de humanidade - : a economia neoclássica comporta-se como uma esfinge que contempla o deserto sem derramar uma lágrima, pois pedras não sabem chorar.
Nesse deserto, a paz social fica por conta das forças de repressão e por conta das miragens. A difusão de miragens é obra da mídia e dos legionários ideológicos do grande capital. Os economistas contribuem com mensagens do tipo <<>>. Ora, estabilidade monetária com concentração da renda e da riqueza, como ocorre atualmente, só pode tornar pobres os que compunham a classe média, e miseráveis aqueles que eram pobres. É a política de vampirização. O equilíbrio fiscal defendido propõe-se a alimentar generosamente os rentistas da dívida pública, sacrificando os gastos sociais com moradia, saúde e educação. Trata-se aí de um outro vazio - vazio de concretude -, a verdadeira psicose dos economistas neoclássicos, sua insistência em olhar para um mundo inexistente, virtual, para as miragens do deserto, negando o mundo real do capitalismo selvagem, da luta de classes, do imperialismo caçador de tributos e de rendas nas periferias.
Durante muito tempo, os pobres e sua inadequada educação foram responsabilizados pela miséria em que vivem. Dizíam que eles preferem tomar coca cola, cerveja e cachaça, a comprar leite. Outros afirmavam que a pobreza não é tanta, pois na favela há muitas televisões e até carros, embora velhos. Mas, hoje, quando diante de nossos olhos, desfilam milhões de assalariados de baixa renda com um celular na cintura, o que dizem ? Mostram-se muito satisfeitos com o volume de venda de celulares no Brasil, cujo mercado está entre os 10 maiores do mundo ! Não importa se os usuários de celulares são desdentados, mal nutridos, trabalhadores informais... Tanto faz, o que importa é que eles são consumidores de um produto que integra a vanguarda tecnológica na virada do milênio. Não importa se o custo de um celular é de dois salários mínimos, são os altos lucros que devem ser valorizados.
Os fundamentos filosóficos e ideológicos da economia neo-clássica
Os vazios que identificamos, de humanidade e de concretude, no pensamento econômico neoclássico não constituem nenhum absurdo do ponto de vista lógico. Eles decorrem dos fundamentos metodológicos sobre os quais foi elaborada a microeconomia ao longo dos séculos XIX e XX, dois séculos de dominação anglo-saxã e de constituição do capitalismo industrial e financeiro. São também períodos históricos que coincidem com a consolidação da propriedade privada da terra e do poder político da burguesia, no seu movimento revolucionário de liquidação dos resquícios feudais. No contexto latino-americanos, os séculos XIX e XX foram ainda caracterizados pela extinção do status colonial e pelo surgimento da dependência comercial e financeira para com os países europeus e norte-americanos.
Tres dogmas marcaram o surgimento da microeconomia neoclássica : o homo economicus, o mercado competitivo e o livre comércio.
Diferentemente, embora contemporânea do humanismo marxista "cujo objetivo é o pleno desenvolvimento das potencialidades do homem... do homem na sua integridade, e não apenas da consciência do homem, fato que diferencia o materialismo de Marx do idealismo de Hegel" [E.Fromm: p.249], a economia neoclássica construiu a figura do homo economicus.
O homo economicus é uma ficção, formulada segundo procedimentos científicos do século XIX que aconselhavam a fragmentação do objeto de pesquisa para fins de investigação analítica. Os economistas assumiram que o estudo das ações econômicas do homem poderia ser feito abstraindo-se as outras dimensões culturais do comportamento humano : dimensões morais, éticas, religiosas, políticas, etc, e concentraram seu interesse naquilo que eles identificaram como as duas funções elementares exercidas por todo e qualquer indivíduo : o consumo e a produção. O homo economicus nada mais é do que um pedaço de ser humano, um fragmento, um resto, a sua parcela que apenas produz e consome, segundo "leis" deduzidas da observação, cujo único critério de verdade apoiava-se na evidência.
Como a microeconomia concentrou-se no comportamento econômico dos indivíduos, optando pela postura denominada de "individualismo metodológico", ela teve que apoiar-se em algumas características individuais, recolhidas e selecionadas mediante uma intensiva utilização da ideologia liberal. Admitiu que os homens são livres e iguais, embora portadores de diferentes e desiguais direitos de propriedade. Supôs que os indivíduos são, por natureza, egoístas e racionais, duas características que os conduziriam a desejar, em qualquer situação, cada vez mais mercadorias e construiu, assim, o pressuposto da não saciedade ao qual se vincularia, forçosamente, a crença em uma "escassez permanente dos recursos disponíveis para satisfazer as necessidades humanas ilimitadas".
Atribuindo ao homo economicus apenas duas funções elementares, a microeconomia pode conceber a sociedade econômica polarizada por dois agentes : a família nuclear, polo de consumo, e a empresa isolada, polo de produção. Esses agentes polares encontram-se para negociar em mercados, suas decisões de compra/venda são emitidas por intermédio do sistema de preços, e são balisadas por uma racionalidade específica que consiste na busca de satisfação máxima (pelo consumidor – a família) e de lucro máximo (pelo produtor – a empresa).
Como derivação do homo economicus, surgiu o conceito do homo consumens, "um homem cujo objetivo fundamental ... é consumir cada vez mais, compensando assim seu vazio, sua passividade, sua solidão e sua ansiedade interiores. Na sociedade caracterizada por empresas gigantescas, por imensas burocracias industriais, governamentais e sindicais, o indivíduo – sem nenhum controle sobre suas condições de trabalho – sente-se impotente, só, entediado e aborrecido. Ao mesmo tempo, a busca de lucro pelas grandes indústrias do consumo, utilizando-se intensamente da publicidade, transforma o homem em um ser voraz, um eterno lactante querendo consumir sempre mais, capaz de converter tudo em artigos de consumo... Criam-se novas necessidades artificiais e manipulam-se os gostos do homem. O caráter do homo consumens, em suas formas mais extremas, constitui um conhecidíssimo fenômeno psicopatológico." [E. Fromm: p. 257-8]
A segunda ficção sobre a qual foi construído o edifício neoclássico refere-se à tendência dos mercados, em direção à livre concorrência. Mercados competitivos e desregulamentados seriam uma fonte eterna de harmonia e de bem estar social. Na verdade, a primeira e esta segunda ficção complementam-se de forma absoluta. O que aconteceria em uma sociedade constituída por seres racionais e egoístas, visando unicamente seu próprio interesse, sem o caráter místico atribuído ao mercado ? Para os neoclássicos, o mercado seria simplesmente um mecanismo de coordenação automática dos comportamentos econômicos individuais, assegurando a promoção do bem estar coletivo, como uma "mão invisível", permitindo dispensar intervenções do Estado e da Igreja nas duas funções básicas de consumo e de produção. Os preços das mercadorias, e dos fatores de produção, decorreriam naturalmente das flutuações da oferta e da demanda e não sofreriam injunções decorrentes do poder político. Essa verdadeira utopia da direita neoclássica – o mercado competitivo – finge desconhecer que "o monopólio não é um simples acidente, ele é a regra do jogo concorrencial" . [Théret,1992: p.26] Cabe observar que um dos produtos mais recentes da nova economia, o telefone celular, já está sob o comando de apenas tres empresas – Nokia, Motorola e Ericsson, responsáveis por 53% do mercado mundial nesse ano de 2000. E tampouco não é por acaso que elas representam, juntas, a tríade do poder mundial - América do Norte, Europa e Japão.
No que concerne ao mercado de trabalho, particularmente, foi necessário un tour de force. A suposição de igualdade de condições entre o patrão e o empregado, a fim de preservar uma hipotética equidade, levou à criação da figura da "força de trabalho", uma "coisa" separada da pessoa do trabalhador, uma mercadoria fictícia, capaz de sugerir que, no mercado de trabalho, confrontam-se agentes econômicos equivalentes, sendo ambos proprietários, uns como donos do capital, outros como donos de força de trabalho ! "Essa mercadoria fictícia não é nem real nem imaginária ... ela se materializa na relação salarial e aí aparece como suscetível de ter uma existência supra-individual... sua representação monetária é o salário, pelo qual ela se torna uma mercadoria quantificável como outra qualquer... ela representa o indivíduo dissociado de sua capacidade de trabalho, capaz de alienar sua independência real no mercado, imaginando-se livre, ao mesmo tempo, no campo da política..." [Théret, 84]
Substituiu-se, dessa forma, uma realidade caracterizada por oligopólios, trustes e cartéis, por um modelo teórico de livre concorrência. Desde então, todos os modelos e correntes de pensamento econômico passaram a ter o mercado como principal referência, posicionando-se os economistas contra ou a favor de mercados livres e competitivos, em menor ou maior grau, apesar da tendência permanente de oligopolização dos espaços econômicos nacionais. A globalização em curso possibilita a atuação oligopólica no espaço planetário e ratifica as previsões de que, durante a primeira metade do século XXI, todos os setores dinâmicos da economia global seriam dominados por, no máximo, dez grandes empresas transnacionais ! Nem esta realidade, assustadora, tem conseguido abalar os alicerces teóricos e ideológicos da microeconomia. Os seguidores do pensamento único continuam a entoar cantos de louvor à livre concorrência.
Finalmente, mais um encadeamento lógico. Se a mão invisível do mercado é capaz de assegurar o bem estar coletivo dentro de um país, ela também o fará para o conjunto de países, postula a economia neoclássica. Logo, a felicidade geral dos habitantes do planeta requer, como condição necessária, o livre comércio entre países e a livre circulação do capital. Para participar vitoriosamente desse movimento, há uma única condição : ser competitivo. E foi em nome da competitividade que o economista norte-americano, R. Dornbusch propôs, recentemente, um corte de 30% nos salários dos funcionários públicos argentinos, pois, afinal de contas, segundo Dornbusch, "reduções salarais coordenadas ... essa é simplesmente a maneira científica de restabelecer a competividade sem as descontroladas e aleatórias consequências negativas da desvalorização da moeda. Uma economia como a argentina não tem como se recuperar alavancada pela demanda doméstica." [O Valor, 30/08/2000]
A Santíssima Trindade, esses tres dogmas da economia neoclássica – o homem egoísta e racional, os mercados competitivos e o livre comércio – fascinam os jovens economistas e invadem o universo de outras ciências sociais. Constituem o núcleo duro da ideologia que acompanha a globalização e a consolidação do império norte-americano. É muito difícil contestá-los racionalmente, na medida em que eles constituem um ato de fé e na medida em que seus adeptos desprezam a história e as outras ciências sociais e humanas como fonte de aprendizagem e de sabedoria . Desprovidos de cultura humanística e despojados de base histórica, os modelos econômicos neoclássicos curvam-se em servil reverência a um único senhor – o dinheiro. Assim como Midas, rei dos Frígios, esperam e sonham com a possibilidade de transformar em ouro todas as coisas, a um simples toque da mão. Em linguagem moderna, os nossos Midas valem-se do computador e das infovias para perseguir seu único sonho, o de acumular riqueza sonante. É o desejo de Midas que está na base do pensamento de Dornbusch, quando ele afirma que "a moeda forte é a melhor coisa que os argentinos conseguiram na década de 90, e isso deve ser preservado e expandido."! [ibid]
São esses os principais fundamentos filosóficos, ou doutrinários, da moderna teoria econômica. Absolutamente divorciados das características reais de evolução das sociedades. Ela nega que relações de classe estejam vinculadas a relações de propriedade, nega a importância da história na compreensão do desenvolvimento econômico, nega a relação dialética entre produção e consumo, nega o caráter concentrador do efetivo funcionamento dos mercados, nega as tendências de monopolização e de oligopolização em mercados livres e desregulamentados. Por isto, as divergência entre escolas de pensamento econômico abordam apenas os aspectos formais do problema, fazendo do debate econômico um debate vazio de conteúdo.
Na verdade, as sociedades que se organizaram tendo como princípio unificador o mercado, e como elemento estruturante a ideologia de uma economia de mercado, tampouco estão aptas a construir os alicerces de uma democracia real, com igualdade de oportunidades para todos os súditos. No Brasil, particularmente, como bem observou Touraine, "esses 20 anos não foram um período de progresso da democracia, mas de debilitação, de redução da democracia a um ato eleitoral que muitas vezes não significa nada. O debate sobre a democracia hoje é vazio... (e gira apenas em torno de) governabilidade e integração" . Nos Estados Unidos, "jornalistas apontam para a constituição de um governo dos ricos, de uma plutocracia exemplar, tendo como consequência, entre outras, o desprestígio da política. No dia da eleição, mercado por mercado, os eleitores preferem ir ao shopping" [Belluzo, FSP, 21/09/2000]
Não por acaso, a consolidação de uma plutocracia na gestão da sociedade norte-americana corresponde a uma intensa concentração de renda naquele país. Segundo Susan George, "a renda média de um PDG norte- americano é 419 vezes o salário de seu operário médio... Na Inglaterra e nos Estados Unidos, o trabalhador ganha menos hoje do que em 1987, seu nível de consumo é sustentado pelo bolsa e pelo endividamento" . No Brasil, o salário de um técnico de futebol é mais do que 2.000 vezes o salário mínimo, e mais do que 100 vezes superior ao rendimento médio do estrato superior de renda (rendimento médio que, segundo o IBGE, fica em torno de R$ 2.400). O salário dos executivos das empresas públicas que foram desnacionalizadas no processo de privatização também é absolutamente divorciado dos níveis salariais médios, constituindo um outro elemento que atua no sentido de concentrar cada vez mais a renda nacional dos brasileiros.
Um futuro ameaçador : o Relatório Lugano
É da França que nos chegam os ecos de uma crítica profunda da teoria econômica atual. Em recente pesquisa, promovida pela Universidade, sobre "A crença econômica", as respostas aos questionários encaminhados sugerem que "a economia, com sua ortodoxia, seus gurus, seus prosélitos, seus crentes e seus heréticos, está mais próxima do campo religioso do que do campo científico autônomo pretendido pelos profissionais da economia. O uso abusivo da matemática e a opacidade do jargão utilizado oferecem uma fachada científica que permite excluir do debate os não iniciados, bem como dissimular as intenções políticas por trás da uma linguagem especializada". [Le Monde Diplomatique, setembro de 2000].
Quanto às intenções políticas dos ideólogos do grande capital internacional, os defensores do pensamento único, elas estão relativamente bem delineadas em O Relatório Lugano. Para seus autores, a manutenção do atual sistema neoliberal, e o pretenso "fim da história", só estará assegurada se for possível reduzir em 1/3 a população mundial nas próximas tres décadas. O livro analisa as condições de viabilidade dos objetivos de riqueza e de poder do grande capital, bem como os fundamentos éticos, ideológicos, políticos, econômicos e psicológicos necessários à sua estratégia de preservação do atual modelo de sociedade neoliberal.
As bases econômicas de sustentação do atual modelo de poder do grande capital estão explicitadas em todos os programas de ajuste fiscal coordenados pelo FMI e Banco Mundial. As políticas ali preconizadas concorrem favoravelmente à redução da população mundial e ao reforço da dominação de uns países sobre outros, pois já propiciaram um alto nível de endividamento dos países periféricos, absolutamente essencial à aceitação passiva dos programas de ajuste do FMI. O esforço de exportação que terá de ser feito para fins de pagamento da dívida externa deverá reduzir a disponibilidade de alimentos e gerar efeitos maltusianos, a necessidade de recorrer à prostituição como forma de aumento da renda familiar deverá facilitar a transmissão do SIDA (ou AIDS), outras doenças de fácil difusão poderão propagar-se, como a malária, em razão das más condições de higiene e da saúde pública. Outra medida vigorosamente defendida pelos representantes do FMI e do Banco Mundial, a privatização dos serviços públicos, também tem sido um importante redutor do poder aquisitivo da grande massa populacional que vive nos países periféricos e funciona como um vetor de racionamento de serviços essenciais à qualidade de vida.
Susan George explicita que "os capitais financeiros privados também podem concorrer para a criação de condições favoráveis à redução populacional. Contrariamente aos investimentos em fábricas e em máquinas, as transações com ações e títulos são absolutamente líquidas e podem retirar-se de qualquer mercado a qualquer momento... A crise do peso (mexicano) acelerou a falência de empresas, levou ao aumento da taxa de juros e... a demissões em massa. Em decorrência, houve redução de 25% no consumo de alimentos, subiu a taxa de suicídios e multiplicaram-se os crimes violentos... Em ocasiões semelhantes, os mercados movimentam-se no sentido de assegurar a ordem, instantaneamente; de certa forma, eles promovem eleições permanentes." [p.143-4]
No entanto, práticas econômicas como aquelas que enunciamos acima, admiravelmente bem descritas no Relatório Lugano, requerem instituições políticas competentes. É provável que o grande capital volte-se para a constituição de instituições supranacionais, reforçando algumas organizações que já desempenham funções universais : OMC, AMI, FMI etc. Os autores do Relatório enfatizam que, do ponto de vista do poder econômico transnacional, é absolutamente necessário preservar a atual fragilidade dos Estados nacionais que devem ficar restritos a funções de segurança interna e de (in)justiça. Afinal de contas, "é o mercado mundial que deve permanecer como o grande principio organizador da sociedade". Seus principais coadjuvantes devem ser as instituições internacionais, as grandes empresas multinacionais, e os governos dos países responsáveis.
No front psicológico, trata-se de ganhar os corações e as mentes, e para isso um instrumento útil poderá ser a "politique identitaire". Explica a autora que o objetivo de redução demográfica no planeta será facilitado pela multiplicidade dos critérios utilizados pelas pessoas no processo de busca de identidade : raça, religião, sexo, preferências sexuais, espaços físicos ou econômicos, etc. Seria possível, dessa forma, ampliar indefinidamente o número de comunidades a que um indivíduo pode ligar-se para fins de defesa de seus direitos, pois até já existem comunidades que são apenas virtuais. Governo e mídia devem incentivar a proliferação dos líderes dessas minorias ou tribos. "Cada um deverá ter seu jornal, sua revista, sua rádio, sua televisão, seu sítio eletrônico, e todos deverão preocupar-se, prioritariamente, em defender seus <>, concebidos não apenas de forma negativa... mas positivamente (direito a um tratamento especial, p ex, como prêmio por erros do passado, reais ou imaginários), e poderão até revindicar o direito a um Estado particular (separando-se de um outro Estado no qual estejam inseridos atualmente)" [ibid, p. 152].
A proliferação das comunidades às quais um indivíduo julgue pertencer, pode funcionar como forma de evitar uma resposta majoritária a um brado do tipo <<>>, ou a um apelo como aquele, histórico, <>. Se alguém, no futuro, pronunciar um chamamento desse tipo, não haverá resposta, pois os gritos dos líderes das minorias artificialmente construídas por meio do processo de busca de identidade, serão tantos e tão fortes, que qualquer outro grito será abafado. Pouco importa se a maioria das identidades, e em particular "as pretensas identidades étnicas tenham frágeis raízes históricas e sejam de criação recente... mesmo não existindo, assim como Deus, elas são extremamente poderosas ..." [ibid, p.152].
Susan George esclarece as eventuais vantagens, para os dominadores de hoje, de uma "política identitária". Em primeiro lugar, essa política facilitaria a exacerbação de tensões no interior de grupos sociais, criando condições para conflitos internos e guerras civis, sem revelar os verdadeiros atores da cena mundial. Em seguida, o processo de construção de novas identidades seria capaz de neutralizar a solidariedade entre indivíduos, tornando mais difícil um forte movimento de oposição às teses neoliberais e a suas estratégias de redução demográfica.
Aqueles que insistirem em desenvolver redes de solidariedade e de universalidade, apoiando-se por exemplo na noção de cidadania, deverão ser desacreditados e desqualificados no plano pessoal, mediante argumentos de etnia, raça, sexo etc, bem como lançando dúvidas sobre sua honestidade e competência profissional. Dessa forma, eles perderiam a confiança de amigos, de vizinhos, de colegas, de estudantes e de trabalhadores, e – é bem possível – até de seus próprios familiares! "A desfaçatez dos manda-chuvas e de seus acólitos – os serviçais remediados – não se esgota na cobrança dos estragos por eles perpetrados durante a farra financeira. A prepotência de sempre os incita a dizer que só os caipiras e provincianos, os esquerdistas atrasados, os que não entendem nada do mundo das finanças podem revindicar uma discussão pública sobre as restrições que a dívida externa, ..., vêm impondo ao crescimento da economia brasileira" [Belluzo, FSP, 10/09/2000]
Em síntese, multiplicar os referenciais de identificação conduz à fragmentação da sociedade e anula os esforços de defesa dos direitos sociais, pois em vez de pensar no que pode ou no que deve ser feito, as pessoas ficariam ocupadas com a questão – quem ou o que sou eu ? Afinal de contas, os neoliberais, apoiados pela grande maioria dos economistas neoclássicos, consideram que o Estado-nação está ou em vias de extinção ou no caminho de uma redução substancial de suas funções, não havendo portanto razão alguma para manter os direitos que eram garantidos pelo Estado. Dificilmente, os novos detentores do poder político mundial concordariam em assumir uma tarefa tão custosa em termos monetários e tão contrária ao objetivo de liquidação do excedente demográfico. Por isto, segundo eles, "é preciso lutar ativamente, por toda parte, contra a noção de cidadania". [ibid, p.151]
O Relatório Lugano é um vigoroso brado de alerta contra o capitalismo selvagem e nos faz lembrar do Manifesto Comunista. É um brado de alerta que soa como o eco daquele que fez tremer os capitalistas do mundo inteiro : revolucionários do mundo, uni-vos ! Confesso que dele fiz uma leitura paradoxalmente emocionada e racional. É um livro que ajuda a entender que as políticas públicas adotadas não são absurdas, sem nexo, nem irresponsáveis. Elas seguem claramente as diretrizes que servem à estratégia de consolidação do poder global do grande capital, e a um modelo de desenvolvimento sustentado excludente. Se não há lugar para todos, salvem-se os melhores ! é o lema das elites globalizadas. Como diz Susan George, no papel fictício que ela se autoatribuiu – de consultora dos grandes capitalistas – para melhor expor a lógica e os fundamentos do que seria, não uma conspiração imperialista, mas simplesmente o consenso pós-moderno dos homens de negócios: eles deverão escolher entre o fim ou os fins !
Reconstruindo a utopia : o socialismo civil
É claro que nem todos os economistas, brasileiros ou estrangeiros, curvaram-se perante o altar do mercado e acomodaram-se ao pensamento único. São muitas as vozes divergentes, reagrupadas em várias escolas dentre as quais eu distinguiria os keinesianos, os marxistas e os regulacionistas franceses. O traço comum a todos que se opõem à economia neoclássica é o respeito à história, o enfoque pluridisciplinar, e a concepção humanista do homem e das sociedades. Apesar de pouco divulgados pela mídia, há trabalhos notáveis que estão sendo produzidos e levados ao debate em reuniões técnicas. Dentre eles, eu destaco a obra de Bruno Théret, da Escola Francesa de Regulação, para quem "o neoliberalismo é pura ideologia negativa em sua forma doutrinária, e simples prática de desestruturação em sua forma gestionária... (e incapaz de propor) um sistema de regras capazes de estabilizar os resultados das mutações em curso." [Théret, 1998: 143]
Para Théret, a superação dos impasses atuais implica em reconhecer a necessidade de superar tanto o capitalismo liberal quanto o socialismo estatal, vinculados, ambos, a um modelo totalitário incompatível com o pleno desenvolvimento das potencialidades do ser humano. Por outro lado, esses dois sistemas mostraram-se incapazes de conciliar os ideais de liberdade e de igualdade, como também não souberam (ou não quiseram) construir os fundamentos sociais necessários à primazia da fraternidade entre os homens, relativamente ao individualismo liberal e ao estatismo socialista. Segundo Théret, as sociedades modernas não admitem mais a perpetuação da oposição entre liberdade e igualdade, e exigem a intervenção de um tertius – a fraternidade ou a solidariedade recíproca. Trata-se, na verdade, de elaborar os mecanismos de regulação de uma democracia socialista, de uma democracia real, capaz de impor limites ao poder econômico e ao poder político, subordinando-os à autoridade da sociedade civil e ao princípio da solidariedade recíproca.
Nas palavras de Théret, "é possível demonstrar a viabilidade de superação do capitalismo, mesmo após o fracasso da experiência de socialismo estatal, assim como é possível acreditar que o capitalismo não é o fim da história. Tampouco o desenvolvimento político pode ficar restrito aos limites da democracia liberal ... este sistema que prioriza a liberdade em detrimento da igualdade e da coesão social... É necessário operar, simultaneamente com os princípios da fraternidade, da igualdade e da liberdade..." [Theret, 1999]
- Concluindo ...
Entrego a nossos psicanalistas brasileiros a tarefa (árdua), e o desafio, de analisar os impactos sobre a sociedade brasileira, e sobre cada indivíduo, da "política identitária" que tanto interessa ao grande capital internacional. E agradeço essa oportunidade de refletir sobre um conceito que não figura nos manuais de economia nem nos artigos produzidos por economistas neoclássicos, embora ele esteja absolutamente presente no cotidiano de nossas vidas, exprimindo-se pela voz dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados, e de tantos outros excluídos e absolutamente sem-futuro. O que me permite sinalizar para mais um enorme vazio no espaço da economia neoclássica : o vazio de utopias e de expectativas.
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*Ceci Vieira Juruá, economista, professora universitária e consultora em Finanças Públicas e em Planejamento de Transportes (email: mayra@montreal.com.br) Trabalho apresentado ao Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, em ciclo sobre o "Vazio", setembro de 2000


BIBLIOGRAFIA
GEORGES Susan. Le Rapport Lugano. Ed. Fayard, Paris, 2000.
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